Frei Marcelo de Jesus, 0.Carm.
Convento do Carmo, Mogi das Cruzes-SP. 09 de maio-2011.
             No terceiro capítulo apresenta-se a mística de Santa Teresa de Jesus. Porém, antes é necessário definir qual era o significado que dava à esta antes da monja carmelita. Deve-se levar em consideração alguns traços da que foi vivida antes, vinculada ao processo místico que Teresa experimentou: uma mística ligada à união e à interiorização com Deus na abertura do coração, centrada na obra Castelo Interior. Em seguida, se estudará os meios eficazes (autoconhecimento, humildade, oração), para se entender o processo das Moradas Espirituais, para alcançar a contemplação perfeita.[1]  
            1. O significado da Mística
            Hoje o termo mística é usado com variadas significações que muitas vezes entram em contradição ao sentido originário da palavra: encontro com Deus. Há uma relativização, pois se diz que há uma mística para tudo. Este trabalho não tem a intenção de esgotar o significado da palavra; visto que isto seria impossível. Será feito uma delimitação, buscando uma definição que nos ajude a entender a mística de Santa Teresa. No entanto, faz-se importante rever parcialmente as mudanças, que o termo foi adquirindo no passado ao de Teresa.
            O carmelita e bispo Dom Vital, [2] em seus estudos sobre a mística, ressaltou que infelizmente, este termo já entrou no vocabulário comum, chegando a tornar-se uma palavra da moda, uma espécie de coringa que mudava de valor e significado, conforme as circunstâncias. Fato foi que as palavras espiritualidade e mística já não pertenciam unicamente à Tradição Católica. [3]
            Embora não se pudesse distinguir na Bíblia o termo mística, pôde-se todavia, falar de um sentido bíblico da palavra: encontro com a orientação de Deus para a vida. Deus diz como proceder para que se realizassem as promessas para o mundo, que deveria conduzir à plenitude, seus seguidores.
            No Dicionário de Mística, Borriello afirmou que em todos os livros do AT apareciam com clareza o sentido da transcendência infinita de Deus e sua presença na história do seu povo,presença que não podia ser vista pelo homem. Desta maneira, fez-se menção de personagens que, em si, traziam um sentido bíblico místico.
            Um exemplo disto foi vivido por Moisés, o qual no monte Sinai, descobriu Deus na sarça ardente, assim como também Elias, no monte Horeb, teve o deleite de Sua Presença. Estas experiências indicavam que, entre Deus e o homem, poderia haver relações não diferentes do que seria mística.
            A partir do NT na pessoa de Jesus, se repetiu a presença do monte que no dizer bíblico significava lugar da presença de Deus, ou onde Deus se revela. Como relatou os evangelistas, sempre que Jesus tinha que tomar uma decisão séria, Ele ia ao monte para se encontrar com o Pai, fazer a experiência do amor para ter forças sobre os espíritos malignos que amedrontavam os filhos de Deus.
            Concluiu-se então, que o sentido bíblico de mística seria a experiência de encontro com Deus que transformava o homem para a tarefa de cuidar da criação. Foi desta maneira que o sentido da mística foi profundamente bíblico.[4]
             Após as explicações sobre o sentido da palavra mística, fez-se necessário estudar alguns períodos da história e observar como a mística era pensada, começando da Patrística até a Idade Moderna, na qual esteve localizado, o século de Teresa de Jesus. Porém, convém tratar alguns fatos e experiências dos períodos, pois seria impossível evidenciar todos.
            Entretanto antes da Patrística, lembrou-se que no mundo grego pré-cristão a palavra em questão só existia como adjetivo e não como substantivo. Na maioria das vezes, não era tão somente um adjetivo teológico referente à característica anormal, mas sim da descrição, o silêncio, em conformidade com o significado originário e etimológico do termo, que pelo contrário, normalmente se usava a expressão contemplação [5] para indicar aquilo que hoje se expressa como mística. [6]
            Orígenes, teólogo de Alexandria, (morto entre 252-254), aplicou o termo místico à exegese chamada espiritual das Escrituras, sendo estas interpretadas na perspectiva do mistério de Cristo. Não era uma compreensão meramente intelectual, era uma leitura orante que não incidia somente numa meditação; mas que provocava uma experiência mística: a experiência do Espírito.
            No entanto, observou Vannini, que Orígenes apresentou a vida mística como uma espécie de conhecimento experimental da realidade divina, iniciando desta maneira, a Doutrina dos Sentidos Espirituais. Mística era uma realidade que permitia provar, tocar e ver as realidades divinas. Tratava-se, todavia, de metáforas que indicavam experiências de ordem espiritual e assim, seria uma grave perversão da própria vida espiritual, entendê-las e desejá-las na ordem sensível.
            A Tradição Cristã indicava como Pai da Mística, Gregório de Nissa (331-394), teólogo e filósofo cristão, nascido em Cesareia, da Capadócia, na Anatólia, Ásia Menor, hoje Kayseri, na Turquia e fundador do Monasticismo. A contribuição mais importante de Gregório, à história da mística, encontrou-se na sua obra mais significativa a este respeito, que fora a Vida de Moisés. Nela, houve uma reconstrução edificante da história narrada pela Bíblia, como uma exegese alegórica; assim, Moisés se tornou o símbolo da alma em sua ascensão espiritual. Depois de ter deixado o mal, as paixões terrenas, simbolizado pelo Egito, sua alma subiu ao monte do conhecimento de Deus; entretanto, o ingresso de Moisés na escuridão da nuvem, indicava que a essência de Deus era, em si mesma, incognoscível.
            As palavras nuvem, noite, trevas, nada, sempre foram essenciais da mística cristã; depois amplamente utilizadas também fora dela, até se tornarem um dos mais importantes registros literários e culturais do mundo. Todos sabiam que as mesmas eram provenientes da Teologia Mística de Dionísio Areopagita. Na realidade, era da Vida de Moisés que esse desconhecido autor as tomou e daí que percorreu a história da espiritualidade, até João da Cruz. [7]
            Foi nos contextos bíblicos e sacramentais que apareceram expressões como contemplação mística, mística comunhão das núpcias, mística e divina comunhão entre Cristo, o celeste Esposo e a Esposa (estes termos identificados ora com a Igreja, ora com a alma individual). O Cântico dos Cânticos seria, desde o século III até o V, uma referência privilegiada para tratar do assunto na perspectiva do mistério de Cristo, mesmo na corrente teológica da escola de Antioquia, pouco propensa às alegorias dos Padres Alexandrinos. Em séculos posteriores, o Cântico continuaria a manter uma preferência dos autores místicos, porém, dando-lhes uma interpretação mística mais afetiva e psicológica.[8]
            Depois dos primeiros séculos da era Patrística, a virada essencial na história da mística cristã ocorreu na Idade Média, com Bernardo de Claraval (1090-1153). Bernardo falava do tríplice beijo: nos pés, na mão e na boca de Cristo, para indicar as três etapas fundamentais do caminho da alma: a via purgativa, a iluminativa e a unitiva. Isto não era totalmente novo, mas não havia dúvida que com o místico cisterciense, assumiu um peso absolutamente maior. Não surpreendeu que depois dela, o tema do matrimônio espiritual tinha se tornado quase que obrigatório na literatura mística e nem sempre com aquela pureza que havia em Bernardo. [9]
             No Concílio de Trento, na Idade Moderna, apareceram dois grandes místicos espanhóis: Teresa de Jesus - a qual o estudo foi dedicado e João da Cruz, ambos representaram o ponto mais alto da compilação da experiência mística e aos quais se referiram todos os teólogos posteriores, tratados no texto. Eles viveram plenamente o clima do Concílio de Trento (1545-1563) que ligava a mística à atividade missionária, fora e dentro dos conventos.
            Neste primeiro percurso do capítulo, se percorreu com as definições, mais que isto, as experiências místicas vividas pelos Pais na Fé. Não se poderia ter somente uma única definição do que seria a palavra em questão, mas sim como ela foi tomando forma desde a origem cristã, até a época de Teresa de Jesus. Apenas valeu ressaltar que, entre uma ou outra definição, sempre passou pela base central da significação mística: a experiência de interiorização e união com Deus. Não se tem dúvidas de que toda experiência mística passava por esta via; assim aconteceu com Teresa e tantos outros místicos de todos os tempos, o mesmo podendo ocorrer à todos. Por isto, fez-se menção ao excerto: 
Místicos sempre houve em todos os tempos e lugares, e haverá sempre e em toda parte, porque pensar ou criar misticamente é necessidade insuprimível da vida como o pensar filosófico ou o criar poético. Isso porque o homem é feito a imagem de Deus, e por isso, se, em teoria, a razão do homem pode chegar a certo conhecimento da existência de Deus, se bem que não sem perigo de mistura de concepções errôneas, talvez seja lícito pensar que, em certas circunstâncias privilegiadas, todo homem é capaz de experimentar no fundo de sua alma, alguma coisa da presença divina, ainda que a razão não tenha antes desempenhado seu papel, ainda que ela não saiba reconhecer a realidade que se faz sentir. [10]


[1]Serão estas as principais bibliografias a serem trabalhadas neste capítulo: Mística. Borriello, E. et alii. Dicionário de Mística. São Paulo: Paulus, 2003. p. 706-714; SUDBRACK, Josef. Mística: a busca do sentido e a experiência do absoluto. São Paulo: Loyola, 2007; WILDERINK, Vital J. G. Místicos e Místicas. Belo Horizonte: Editora Divina Misericórdia, 2004; VANNINI, Marco. Introdução à Mística. São Paulo: Loyola, 2005; TEIXEIRA, Faustino (Org.). A mística cristã em reciprocidade e diálogo: a mística católica e o desafio inter-religioso. In: No limiar do Mistério: mística e religião. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 35-73; alguns artigos da internet e a obra principal deste estudo: TERESA DE JESUS, SANTA. Castelo interior ou moradas. Rio de Janeiro: Paulinas, 1982.
[2]Dom Vital J. G. Wilderink nascido na Holanda, veio ao Brasil com 17 anos, onde entrou na Ordem do Carmo. Estudou teologia em Roma e lecionou no Colégio internacional da Ordem. De volta ao Brasil nos anos pós-conciliares, atuou na CRB Nacional na área de formação. Trabalhou na diocese de Itabira e em seguida na diocese de Volta Redonda, com a incumbência de preparar a criação de uma nova diocese no litoral fluminense. Foi nomeado bispo auxiliar na Diocese de Volta Redonda em 1978 e posteriormente o primeiro Bispo da Diocese de Itaguaí. Atualmente é Bispo emérito, mora num eremitério no município de Lídice (RJ). 
[3] Vital J. G. WILDERINK, Místicos e Místicas, p. 31.
[4] E. Borriello et alii, Dicionário de Mística, p. 707-708.
[5] Contemplação é a atividade humana de meditar, pensar e considerar um objeto externo ou mental. 
[6] Marco VANNINI, Introdução à Mística, p. 12.
[7] Marco VANNINI, Introdução à Mística , p. 43-48.
[8] Vital J. G. WILDERINK, Místicos e Místicas, p. 40-41.
[9] Marco VANNINI, Introdução à Mística, p. 56-57.
[10] Cf. E. Borriello et alii, Dicionário de Mística, p. 706.