Orar pelo próximo.

Orar, "rezar" pelos milhões de pessoas que estão sofrendo em todo este mundo.Pelos que estão em hospitais, doentes com doenças terríveis, pelos que estão em uma guerra talves pessoal ou não, acidentados, preso a vícios. Todo tipo de injustiça !! Ninguém, é obrigado a nada queremos que DEUS nos escute e ajude, quem precisa. Jesus o Cristo, ele sabe tudo ele pode tudo amém.Cada bandeirinha no Globo, vou acreditar que seja alguém orando, ao Filho em nome do Pai e do Espirito Santo.Pois este mundo esta pior que Sodoma e Gomorra. (FIEL_e_Pecador)

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SEGUNDO A LEI.

Segundo o Evangelho, depois da Morte e Ressurreição do Salvador:
Mas, àquele que não pratica, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada como justiça. [Romanos cap.4, v.5]
Qual das respostas acima se aplica a sua ''Religião''? Em que época da história você se encontra? No Antigo Testamento (Lei) ou Novo Testamento (Graça)?

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

OS DEMÔNIOS DESCEM DO NORTE


Delcio Monteiro de Lima

1987

Francisco Alves



Para José Fermin Suarez Fernandez, um amigo.


SUMÁRIO

I - UMA DISPUTA DE ESPAÇO

A ingerência dos Estados Unidos na promoção de seitas na América Latina - Uma barreira para conter o comunismo - As suspeitas do Departamento de Estado americano em relação à Igreja Católica - Queixas das multinacionais contra os protestantes históricos - Desdobramentos da ruptura da Igreja com o poder - Apoio do Papa aos Bispos brasileiros - O comunismo e a direita contra as comunidades eclesiais de base - Inventariando a conjugação de forças religiosas no Brasil     ­

II - A IDEOLOGIA DOS DEUSES

O cristianismo salvador na escalada fundamentalista nos Estados Unidos - Washington manobra para evitar a aproximação protestantes-católicos - Os relatórios Rockefeller e a Santa Fé: Igreja não é de confiança - Levantamento do CELAM mostra a origem dos financiamentos - A posição incômoda da "Opus Dei" no caso do Chile - Seitas: uma preocupação não só dos católicos - Particularidades do avanço dos grupos religiosos autônomos na América Latina

III - EXORCIZANDO FANTASMAS

O pentecostalismo importado dos Estados Unidos – Raízes americanas da Assembléia de Deus, Congregação Cristã e Igreja do Evangelho Quadrangular -14 milhões de crentes no Brasil­ - Revelando um império econômico a serviço da expansão religiosa - A sedução da política - Os pastores eletrônicos lá e aqui - Renovação carismática: os pentecostais católicos - A síndrome da Teologia da Libertação

IV - O ORIGINAL E O BIZARRO

Os mórmons, tão ricos quanto misteriosos - O problema racial na Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias - Reviravolta americana no caso das testemunhas de Jeová - Seita Moon: uma religião coreana que mudou para os Estados Unidos - Negócios fabulosos sustentam o anticomunismo no mundo - No Brasil, aliciando jovens e atraindo militares - A articulação política das seitas

V - GEOPOLÍTICA DA FÉ

Proselitismo das transconfessionais dos Estados Unidos nas classes de baixa renda - A estratégia do “Missionary Information Bureau" - Uma Bíblia adulterada para os indígenas -  ­Omissão do governo brasileiro - Interesses econômicos, aculturação e manipulação política das seitas - Uma advertência


I
UMA DISPUTA DE ESPAÇO

"Acho difícil conceber uma estrutura organizacional melhor que a nossa. Noto que muitas pessoas a quem visito - altos executivos, homens de negócios e industriais, mesmo chefes de Estado - ficam maravilhados pela eficiência da estrutura de nossa Igreja." A revelação é do pastor Neal C. Wilson, presidente, desde 1978, da Associação Geral da Igreja Adventista do Sétimo Dia, sediada em Washington, em recente avaliação das atividades de quase 6 milhões de adventistas existentes em 190 países, que ajunta ao seu entusiasmo:
"Também fico impressionado com o número de adventistas que ocupam lugares de influência nacional e internacional ao redor do mundo. Quando eu era jovem, a Igreja não possuía muitos amigos nos altos postos e os adventistas eram quase desconhecidos no mundo dos negócios, das profissões e da política. Hoje, tudo mudou. Deus tem feito prosperar muitos dos nossos irmãos, dando-Ihes habilidade de liderança, força espiritual, uma variedade de talentos e êxito financeiro. Por isso, eles têm contribuído generosamente em todas essas áreas, permitindo que nossa Igreja seja vista sob nova luz."
A Igreja Adventista do Sétimo Dia é, na verdade, uma empresa religiosa moderna e extremamente eficiente, onde quer que tenha presença. Certamente a mais dinâmica de todas. No Brasil, aproximadamente 600 mil crentes, apoiados por uma vanguarda que compreende cerca de 7 mil pessoas, entre pastores, missionários e obreiros, desenvolvem um trabalho, notadamente no campo social, que está longe de ser seguido ou imitado por qualquer outra religião. É uma gama de atividades desproporcional, inclusive, ao número de fiéis ou tamanho daquela Igreja entre nós, envolvendo um elenco de ações só passíveis de controle mesmo por mecanismos de uma organização de feições multinacionais, tal o seu porte.
A desenvoltura que caracteriza a participação da Igreja Adventista do Sétimo Dia na solução dos problemas da Educação e da Saúde enfrentados pelos diversos países é realmente impressionante. Parece que os números esclarecem com suficiente clareza essa contribuição: 5.500 unidades educacionais primárias, secundárias e superiores, com mais de 30 mil professores ministrando ensinamentos a cerca de 1 milhão de estudantes. Opera, por outro lado, um complexo internacional integrado por 166 hospitais, 234 clínicas e dispensários e 54 lanchas e aviões, a serviço do que chama evangelho da Saúde. Um verdadeiro exército - 47 mil pessoas - se ocupa dessa imensa rede beneficente nos variados quadrantes do mundo. Mantém, ainda, 51 casas-editoras espalhadas em diversos países, incumbidas de publicações em 175 idiomas, onde se incluem jornais, revistas e livros, com enormes tiragens, sobre fumo, álcool, droga, alimentação e hábitos de vida.
A obstinação dos adventistas em promover a Educação e cuidar da Saúde mereceu, a propósito, curiosa observação da revista "US Catholic", em artigo escrito por William J. Whiler, respeitado catedrático de História da Universidade Católica de Purdue, que diz que podemos esperar que uma Igreja que aguarda o fim do mundo a qualquer momento concentre sua atuação exclusivamente em assuntos religiosos. Mas que não são assim os adventistas. Sua crença na Segunda Vinda não arrefeceu seu empenho em favor da Educação, do cuidado médico ou do serviço em prol dos outros e que nenhuma Igreja pode apresentar mais impressionante relatório de serviço médico do que a Adventista do Sétimo Dia, levando-se em conta o número total de seus adeptos.
A preocupação dos adventistas com a Saúde, com efeito, manifestou-se quando da institucionalização da sua Igreja, ocorrida
em 1860. Num período de grande turbulência da vida americana, como a que sucedeu à Guerra Civil, já punham em funcionamento, em 1866, sua primeira instituição médica, o "Western Health Reform Institute", em Battle Creek. Construíram um hospital bastante avançado para uma época em que as péssimas condições sanitárias existentes, sustentadas por práticas médicas empíricas, eram responsáveis, por exemplo, por uma mortalidade infantil de 1 criança em cada grupo de 6 no primeiro ano de nascimento e a expectativa de vida dos americanos estava limitada a, apenas, 39,4 anos. Naquele tempo, a Associação Médica Americana, criada em 1847, não dispunha de instrumentos eficazes para proibir o exercício da Medicina por pessoas que soubessem os rudimentos da anatomia humana, possuíssem razoável estoque de drogas ou tivessem habilidade para fazer uma sangria. Os adventistas tiveram a ousadia de mudar tudo isso, de inovar, e preconizaram, antes de mais nada, uma estratégia de Saúde que respeitasse a força dos valores da natureza.
O entendimento de que o corpo humano é o templo de Deus e deve ser preservado nas melhores condições possíveis é um princípio evangélico seguido à risca pelos adventistas. Seus pregadores sempre tiveram a percepção da existência da íntima relação entre a Saúde física e a Saúde espiritual e enfatizaram a necessidade de manutenção desse equilíbrio para uma vida longa a serviço de Deus. Comprometer esse equilíbrio seria, pois, faltar ao Senhor, desertar à Sua causa. Por isso, atribuem excepcional importância à vida marcada pela ausência de excessos. Glorificam a temperança. São tradicionais suas campanhas contra o fumo, o álcool e o tóxico, sempre orquestradas com farta publicação de revistas e livros de doutrinação contra esses vícios.
A apologia da Saúde incorporada ao proselitismo religioso contou sempre com o reforço dos ensinamentos dos mais lúcidos ideólogos do adventismo. Exemplo é a sra. Ellen G. White (1827-1915), autora de vários livros, cujas visões são consideradas roteiro de fé para todos os crentes, que valorizou aquela relação em diversos trabalhos sobre emprego terapêutico dos agentes naturais, importância da alimentação, Medicina preventiva, Saúde mental e Saúde espiritual, até hoje fundamentos da ação adventista nesse campo. E de sua autoria a advertência segundo a qual “não é seguro e tampouco agradável a Deus que, após violar as leis da natureza, busquemos ao Senhor, pedindo que vele sobre a nossa Saúde e nos guarde de enfermidades, quando os nossos hábitos contradizem as nossas orações".
Recentemente, pesquisas feitas no Estado da Califórnia (Estados Unidos) e na Noruega, entre a população adulta, cobrindo um espaço de 5 anos, mostraram que os adventistas geralmente vivem em média mais 7 anos do que os outros cidadãos. O câncer e as doenças do aparelho respiratório, principalmente, incidem menos naquele grupo religioso, o que é explicado pelo estilo de vida ascético adotado pelo mesmo. A constatação tem incentivado então os adventistas a intensificar em todo o mundo a luta contra as formas de vida desregradas, desencadeando regularmente vigorosas campanhas contra o fumo, a disseminação dos tóxicos e do álcool e abrindo novos centros de tratamento e recuperação dos viciados.

UMA EFICIÊNCIA COMPROVADA

O adventismo é uma religião forjada e retocada ao modelo de vida da classe média americana, tipicamente conservadora e puritana. Nascido nos Estados Unidos no começo do século passado, é um movimento de dissidentes da Igreja Batista, então insatisfeitos com alguns dogmas de fé do protestantismo histórico. Prega obstinadamente a Segunda Vinda do Salvador, quando os justos falecidos ressuscitarão e, juntamente com os justos que estiverem vivos, serão glorificados e revestidos de imortalidade, enquanto os pecadores, os ímpios, só o farão mil anos mais tarde, para serem destruídos para sempre. É a teoria do milenarismo. O adven­tista é proibido de usar estimulantes, como álcool, fumo e café, devendo trajar-se sobriamente e abster-se de passatempos mundanos, tais como cinema, baile e jogos.
William Miller (1782-1849), de Pittsfield, Massachusetts, agricultor de origem humilde, depois militar, interpretando as Escrituras e as visões de Daniel e Apocalipse, conseguiu, a partir de 1812, empolgar alguns setores da comunidade batista para as suas conclusões em torno da Segunda Vinda. Nesses estudos, previa o evento para 1843. Corrigiu-as, depois, apontando o outono de 1844, mais exatamente o dia 22 de outubro, como a grande data. Mas nada de extraordinário aconteceu naquele dia, senão uma grande frustração dos crentes reunidos em orações em Battle Creek, Michigan. Em meio às súplicas, exaltação e choro, o dia clareou e a Segunda Vinda não se concretizou. A conseqüência foi um enorme racha no adventismo, com os fiéis, desapontados, voltando às igrejas de origem. Poucos líderes do movimento suportaram a execração pública, a gozação, e mantiveram-se leais à causa, tentando uma recomposição do que sobrou do adventismo após a debandada.
Entre os reorganizadores e reestruturadores do desarticulado movimento está Ellen G. Harmon, depois Ellen G. White (1827­1915), de Portland, no Maine, uma ex-metodista que veio a desempenhar papel importante no adventismo durante 70 anos. Liderou várias iniciativas, sobressaindo-se como teórica e ideóloga das mais respeitadas até hoje, com 53 livros e 4.500 artigos publicados, abrangendo vários aspectos da fé adventista. Teve destacada atuação na grande arregimentação que culminou na estrutu­ração definitiva da Igreja em 1860.
As crises de menor ou maior proporção enfrentadas pela Igreja Adventista durante a sua existência, desde a grande confrontação de 1888, em Minneapolis, até o cisma irrompido em 1979 na Austrália, não impediram seu vertiginoso crescimento a nível mundial, expandindo-se rápida pelos Estados Unidos, Canadá, Europa, África, Ásia e América Latina. O fato de os adventistas serem sabatistas, isto é, guardarem o sétimo dia, o sábado, consagrado ao descanso, adoração e ministério, não os impediu de ganhar adeptos entre as categorias profissionais que geralmente têm problema por não trabalhar naquele dia da semana. Nem mesmo em regiões onde as atividades jamais são interrompidas no sábado ou que nunca adotaram a "semana inglesa", hábito relativamente novo em países latinos, seu avanço foi prejudicado.
Entre nós, a primeira Igreja Adventista do Sétimo Dia foi organizada em março de 1898, em Gaspar Alto, Santa Catarina. Eram, naquela época, apenas 23 crentes que se reuniam em torno da família Belz. Três anos antes, porém, em 1895, a família Riffel já havia estabelecido em Entre Rios, Argentina, a primeira Igreja da denominação na América do Sul. Hoje, após décadas de trabalho pertinaz, a ação adventista é observada praticamente em todos os Estados brasileiros, com maior vigor, entretanto, no sul do País. São 931 templos, desenvolvendo eficiente atividade pastoral, simultânea a uma movimentação nos campos assistencial e educacional verdadeiramente expressivo em termos de grandeza e abrangência.
Os adventistas mantêm em funcionamento permanente, no Brasil, 11 hospitais, sendo 2 em São Paulo, 2 no Rio de Janeiro, 1 em Belo Horizonte, Campo Grande, Manaus, Belém, Vitória, Londrina e Salvador; 1.300 centros de Assistência Social, incumbidos do preparo e distribuição de alimentos e roupas às famílias carentes e de ministrar cursos de culinária, corte e costura, e princípios de enfermagem; 8 grandes clínicas múltiplas; 18 lanchas-ambulatório equipadas com todos os recursos médicos e odontológicos, percorrendo os grandes rios da Amazônia, Mato Grosso e Pará; 1 avião médico-missionário; várias creches, patronatos, orfanatos, asilos de velhos e clínicas médicas-móveis. Também na área de Saúde, opera várias lojas de produtos naturais, restaurantes vegetarianos e centros de tratamento de alcoolismo. É conveniente esclarecer, a propósito, que a Igreja Adventista não é dona ou sócia da “Golden Cross", poderosa multinacional que explora o ramo da Saúde. Apenas administra alguns hospitais da empresa, porque seu dirigente no Brasil, o advogado Milton Soldani Afonso, é crente e conhece a experiência que a sua Igreja tem no setor. Dessa forma, os únicos empreendimentos de finalidades mercantis dos adventistas brasileiros, cujos lucros, entretanto, são aplicados em obras de benemerência, são a "Fábrica de Produtos Alimentícios Superbom" e a "Uni­brás Corretora de Seguros Ltda.", ambas sediadas em São Paulo.
A contribuição adventista à Educação é, igualmente, significativa. Entram com quase 500 escolas fundamentais em diversas regiões do nosso território e 14 colégios secundários localizados em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Pernambuco, Bahia, Espírito Santo, Pará e Goiás. Além desses, criaram e mantêm institutos agro-­industriais no Amazonas, Pará e Rondônia. Duas faculdades de Teologia, uma em Itapecerica da Serra (São Paulo) e outra em Belém de Maria (Pernambuco), cuidam da formação religiosa em nível superior dos adventistas no País. Registro especial merece o Projeto de Integração e Serviço da Mocidade Adventista (PRISMA), uma espécie de Projeto Rondon do Ministério da Educação, só que com mais recursos, organizado com jovens universitários de Medicina, Enfermagem, Odontologia, Agronomia, Nutrição e Educação, destinado a legar assistência às populações distantes. Tais grupos percorrem de lancha os grandes rios da região amazônica, chegando também a Mato Grosso, Goiás, Pará e Maranhão. Já trabalham há mais de 50 anos na Amazônia.
A divulgação adventista é centralizada na “Casa Publicadora Brasileira" de Tatuí, São Paulo, responsável pela tiragem das revistas "Vida e Saúde", “Mocidade", “Decisão", “Revista Adventista" e "Nosso Amiguinho", que atingem, somadas, cerca de 400 mil exemplares. Edita, também, livros e farto material gráfico de apoio às campanhas contra o álcool, o fumo e as drogas.
Na área de rádio, o programa "A Voz da Profecia" é veiculado em aproximadamente 300 emissoras. Por outro lado, várias estações de televisão transmitem "Encontro com a Vida" e o serviço de aconselhamento telefônico - o Telepaz - é mantido regularmente em diversas capitais.
O cérebro de toda essa gigantesca estrutura religiosa que cobre o Brasil e tem jurisdição também sobre as atividades desenvolvidas em outros países da América do Sul é a Divisão Sul­-Americana da Igreja Adventista do Sétimo Dia, organizada em 1916 e instalada em um amplo edifício de dois pavimentos na discreta avenida L-3 Sul em Brasília. Lá, numa tarde calorenta de março, um acolhedor chileno de origem alemã, o pastor Werner Mayr, 49 anos, casado, três filhos, diretor da Agência de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais (ADRA), enquanto coordenava providências de auxílio às vítimas das enchentes que assolavam as populações que vivem às margens do Lago Titicaca, justificou para o repórter:
- O dízimo arrecadado (dez por cento da renda do crente) não é suficiente para pôr em funcionamento toda essa engrenagem. Cada vez estamos mais comprometidos em obras e campanhas de promoção humana. É evidente, pois, que temos que contar com ajuda externa.

INGERÊNCIA DE FORA

A ajuda externa, justamente, representa um dos pontos delicados de qualquer estudo com o propósito de redesenhar o panorama religioso brasileiro nos últimos decênios. Com efeito, não tem escapado ao observador mais avisado evidências seguras da interferência de estranhos mecanismos na sustentação do novo quadro que vai se delineando a partir do extraordinário impulso que ganharam os movimentos ou seitas modernas surgidas no País. Esse crescimento repentino não pode ser explicado somente pelo resultado da força de doutrinação proselitista dos novos pregadores ou pelo preenchimento dos anseios dos desiludidos com suas crenças originais. Razões puramente subjetivas podem até justificar grande parte das conversões ou substituições de valores espirituais. Mas não podem, evidentemente, ser subestimadas a velocidade e as características peculiares com que se operam as súbitas transformações em causa. Não há dúvida quanto à ingerência de um fator acelerador em todo o processo. Pelo menos, a se dar crédito aos números de adesões àquelas religiões anunciadas pelos porta-vozes dos interessados.
Vista a questão dessa perspectiva de suspeita, é natural, então, que se ponham as indagações cabíveis no caso, ou seja, qual a procedência dessa ajuda e quem são os beneficiários da mesma? qual o seu montante e como se processa? quais os objetivos de quem a promove?
Seria ingênuo, para não dizer absurdo, raciocinar com a hipótese da existência de um plano ordenado com objetivos políticos para conseguir uma modificação imediata no quadro religioso brasileiro. Uma trama desse tipo não se enquadraria na temporalidade das coisas. As ideologias não parecem interessadas em coordenadas de sedimentação tão futura que requeira séculos para apresentar resultados práticos. Mas não desprezam as oportunidades oferecidas pelos rumos naturais que assumem os movimentos sociais ou religiosos, nem deixam de aproveitar as brechas ocasionais que se abrem nas estruturas para infiltrar as mesmas ideologias. É cômodo e fácil. O comprometimento é mínimo. Os investimentos são relativamente baixos nesses casos e os frutos compensadores à curto prazo.
Uma visão com esse enfoque da paisagem religiosa da América Latina, particularmente do Brasil, mostra exatamente a ocorrência do fenômeno favorecendo a capitalização de dividendos políticos para aquela ação oportunista. A proliferação de seitas novas, aliciando crentes com relativa facilidade, sobretudo nas camadas mais pobres das populações urbana e rural, vai alargando os flancos à consolidação de idéias defendidas pela situação dominante. Manter é menos complicado do que mudar. E os movimentos religiosos de grande apelo popular ajustam-se sob medida a essa estratégia, porque, na sofreguidão de engrossar as suas fileiras de adeptos, preocupam-se exclusivamente com o transcendental, deixando o temporal como sempre esteve. Conquanto a fé ostente uma pujança expressiva, competitiva mesmo, dados os termos em que foi colocada a disputa de crentes, o que conta nessa corrida é, pois, o número de ovelhas conquistadas.
A partir dos anos 60, a maioria dos estudos de avaliação do potencial das ideologias consideradas de esquerda na América Latina, promovidos pelo Departamento de Estado americano, tem nucleamento nas aberturas propiciadas pela miséria social e sua abordagem a nível religioso. Lentamente, os especialistas do órgão incumbido de gerir a política externa dos Estados Unidos foram se convencendo de que o cristianismo dos latino-americanos não constituía barreira suficientemente inibidora à penetração, se não do comunismo internacional, pelo menos de formas avançadas do socialismo moderno. Cuba representou um exemplo dos mais eloqüentes para a tese que advoga maior cuidado no encarar o papel das religiões nas transformações sociais desta parte do mundo. Era o primeiro alerta. Depois, o caso da Nicarágua vinha a confirmar o acerto do entendimento. Como conseqüência, todos aqueles estudos passaram a sugerir, então, a necessidade de adoção de uma linha de comportamento político que, no mínimo, significasse uma tentativa de arrefecer ou retardar a atuação daquela poderosa força auxiliar do esquema de ameaça ao que se convencionou chamar democracia ocidental.
A preferência dos especialistas do Departamento de Estado americano nessa atmosfera de desconfiança é pela Igreja Católica, hoje, na América Latina, com irreversível compromisso com a causa dos pobres na busca de uma identificação mais íntima com os princípios sociais da sua fé. Nem cogitam das seitas novas, os movimentos religiosos mais contemporâneos, cuja ânsia de afirmação, como foi dito, afasta completamente qualquer ação pastoral estranha à sua preocupação exclusiva com o transcendental. Mas não estão absolutamente tranqüilos, todavia, quanto ao protestantismo histórico ou tradicional, notadamente no Brasil, onde alguns segmentos do cristianismo têm assumido posições consideradas excessivamente progressistas. É o caso da Igreja Evangélica de Confissão Luterana, que mantém um serviço pastoral junto a índios e lavradores pobres, trabalho feito em comum com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), órgãos da Igreja Católica.
Mais recentemente, empresas multinacionais têm levado freqüentes queixas ao Departamento de Estado americano contra missões protestantes em atividade em regiões indígenas em cujo subsolo são exploradas enormes jazidas de minerais raros. Alegam aquelas corporações que tais missões, a pretexto de evangelizar, são peças fundamentais na engrenagem nacionalista de conscientização dos direitos dos índios sobre as terras. Veladamente insinuam, até, que as missões protestantes agem sob a inspiração de grupos extremistas interessados em prejudicar as atividades das mineradoras. Contudo, os órgãos de segurança brasileiros não detectaram ainda nenhuma articulação alegada nas denúncias, recebidas por via diplomática.

ABANDONANDO A PASSIVIDADE

Certamente habituado ao funcionamento pleno das instituições e não afeito às oscilações que caracterizam o exercício temporário da democracia na América Latina como simples liberalidade das forças armadas, o estrangeiro demonstra certa perplexidade ao constatar, entre nós, a atividade política deslocada da esfera própria das agremiações partidárias para gravitar em outros segmentos da sociedade. Os brasilianistas americanos do Norte, em particular, são incapazes de assimilar essa distorção, inadmissível aos seus padrões de cultura lapidados em exaustiva formação acadêmica. Ficam atônitos. E, mesmo sem capturar nossa realidade, produzem regularmente densos trabalhos de ciência política sobre o Brasil, pontificando teorias a respeito de uma conjuntura de complexa singularidade.
O papel da Igreja Católica no contexto da vida nacional é uma dessas singularidades. Não se tem notícia, com efeito, desde que, no ano 380 da nossa era, o Cristianismo foi oficializado como a religião do Império Romano e que o imperador Constantino, antes, começava a institucionalizá-Io como parte integrante do Estado, de uma ruptura da Igreja Católica com os governantes tão incisiva quanto a que se verificou no Brasil a partir de 1964. Largamente majoritária e tranqüilamente consolidada no País, a Igreja Católica contrariou, inclusive, a evidência sociológica de permanecer alinhada ao sistema de poder devido àquela condição. Mas amargou, com isso, duros reveses. Padeceu as mais iníquas perseguições e, até hoje, sofre toda sorte de incompreensão por assumir pastoralmente a causa dos perseguidos, oprimidos e explorados, por fazer a leitura do Evangelho através de uma nova ótica transformadora. Abandonando uma postura de cômoda passividade e mesmo de vantajosa conivência com o arbítrio, optou pelo caminho áspero da luta pela justiça com Cristo.
A Igreja nunca teve a pretensão de que seu discurso religioso alcançasse dimensão política. Nem buscou, tampouco, representar o papel de único canal de expressão nacional quando os outros foram emudecidos pela repressão. Também não tem culpa de que a sociedade, de modo geral, e os partidos políticos, de forma especial, não tenham sabido, agora, se estruturar e se organizar devidamente para ocupar seu espaço na reconstrução democrática do País. Muito menos, de que os militares não tenham voltado completamente aos quartéis, cedendo à sociedade civil não o poder mas, apenas, o governo. Os acontecimentos precipitaram-­se à revelia da Igreja durante o prolongado desastre institucional brasileiro, representado pelos 20 anos de ditadura militar e o grande vazio que se seguiu.
Rompida, como dissemos, com um passado de longa colaboração e estreita cumplicidade com a situação dominante, a Igreja viu consideravelmente aumentado o número de seus adversários depois da queda da ditadura. Os comunistas ressentiam-se da perda de espaço pela ação católica no meio operário, a burguesia rural temia que a força da Igreja no campo apressasse a reforma agrária. Entretanto, as alardeadas intenções de mudanças sociais eram mais peça de retórica do que aspiração sincera de muitos setores da vida brasileira. O equacionamento objetivo de alterações estruturais reclamadas pelo País esbarrou logo em interesses de grupos poderosos que se emaranhavam, por outro lado, no cipoal político que enleava as classes dirigentes. As profundas reformas exigidas pelas camadas mais sacrificadas da população de uma nação que ocupa, vergonhosamente, o antepenúltimo lugar no ranking mundial da má distribuição de renda teriam que esperar indefinidamente. Na verdade, não se pretendia modificar coisa alguma. Pior. Um furor de conservadorismo arcaico, cristalizado nas formas mais retrógradas do capitalismo perverso, parecia inspirar as transformações sofregamente esperadas pelo povo.
A expectativa de muitos era de que a Igreja retomasse a antiga passividade com o sopro dos ventos da abertura política. Esperavam-na apenas celebrando Missa. Não faltaram até os mais nostálgicos que preferissem vê-Ia recuada ao tempo em que o velho cura da aldeia se assentava à mesa festiva do senhor da fazenda, enquanto capatazes truculentos açoitavam escravos no tronco ou os filhos garanhões sodomizavam as negras indefesas no fundo da senzala escura. Os comunistas, ainda ressaqueados da alegre temporada de confraternização entre os camaradas que foram corridos pelos esbirros e os que não puderam fugir, curtiam duro recalque. Refugiados, então, na grande imprensa, onde foram consentidos ou infiltrados pelos que procuravam manter privilégios, urdiam terríveis intrigas contra a Igreja, procurando agravar as incompatibilidades da Igreja com o governo no caso da reforma agrária. O espanto ante a atitude firme da Igreja na exigência de transformações sociais gerou, assim, uma situação inusitada na política brasileira. Era um elemento novo com o qual ninguém contava.
É, quando nada, suprema burrice supor que a Igreja esteja a serviço de alguma facção ou partido político. Sua eqüidistância, se outras razões mais consistentes não tivesse, encontra explicação na própria fragilidade das agremiações que compõem a constelação partidária brasileira, até hoje uma colcha de retalhos, sem programa, sem ideologia, sem objetivos, sem coisa alguma que justifique a sua existência, sujeita, portanto, a constantes reformulações. Além disso, se pretendesse assumir feição partidária, bastaria orientar sua imensa estrutura para essa finalidade e seria, com absoluta tranqüilidade, a maior agremiação política conhecida, inquestionavelmente a mais sólida e poderosa.
O cuidado da Igreja em imiscuir-se em assuntos políticos não significa, contudo; uma atitude de fraqueza diante das questões de grande perigo para a fé católica. Nesses casos, a Igreja age e com uma determinação que a redime completamente da extrema tolerância com que se conduz e protela a interferência no assunto temporal que criou a situação de perigo. Foi assim no Haiti, para invocar exemplo recente. Lá, a sangrenta ditadura Duvalier (pai e filho), para hostilizar a Igreja, a qual vinha perseguindo implacavelmente durante anos, chegou mesmo a considerar o vudu a religião oficial da pequena república. O Episcopado haitiano enfrentou o regime e o apoio do Papa João Paulo II veio quando de sua visita ao País, ocasião em que aconselhou: "Tenham fé, mas também tenham coragem. Lutem por seus direitos." Foi o esperado sinal-verde para a insurreição nacional que provocou a fuga do "Baby" e as enormes matanças de líderes vudu que já começavam a invadir os templos católicos.

COESÃO TOTAL

Para evitar deformações costumeiras, verificadas nos despachos de agências noticiosas, o Papa João Paulo II decidiu mandar ao Brasil, como seu emissário especial, o prefeito da Sagrada Congregação dos Bispos do Vaticano, o cardeal Bernardin Gan­tin, em abril de 1986. Sua missão era entregar pessoalmente uma carta de Sua Santidade aos 261 participantes da 24ª. Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, reunida em Itaici, correspondência de 400 linhas em que fixava o exato pensamento da Igreja sobre a atuação da CNBB e afastava, de uma vez por todas, quaisquer especulações quanto a pretensos antagonismos entre os prelados brasileiros e a Santa Sé. Era o dia 12 de abril de 1986.
O documento começava falando de dois desafios que enfrenta a Igreja no Brasil: um, de natureza eclesiástica, onde estão incluídos a escassez de sacerdotes, religiosos e agentes pastorais e as ameaças à fé por parte das seitas fundamentalistas ou não-cristãs; o outro, representado por problemas de natureza cultural, sócio-política ou econômica, ligados ao momento histórico que o País atravessa.
Afirmava que faz parte da missão da Igreja preocupar-se também com questões sociais e sócio-políticas. Condições de justeza no exercício dessa parte delicada da sua missão evangelizadora são, entre outras: uma nítida distinção entre o que é função dos leigos, comprometidos por específica vocação e carisma nas tarefas temporais, e o que é função dos pastores, formadores dos leigos para as suas tarefas, conscientes de que não cabe à Igreja, como tal, indicar soluções técnicas para os problemas temporais, mas iluminar a busca dessas soluções à luz da fé, uma praxis no campo sócio-político, que deve manter-se em indefectível coerência com o ensinamento constante do magistério. A seguir, assinala:
"A Igreja conduzida pelos senhores bispos do Brasil dá mostra de estar com este povo, especialmente com os pobres e sofredores, com os pequenos e desassistidos, a quem ela consagra um amor não exclusivo nem excludente, mas preferencial." João Paulo II observa, aí, que a Santa Sé acompanha e aplaude aquela atitude e que "manifestação e prova da atenção com que compartilho esses esforços são os numerosos documentos publicados ultimamente, entre os quais as duas recentes Instruções emanadas da Congregação para a Doutrina da Fé, com a minha explícita aprovação: uma, sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação (Libertatis Nuntius, de 6 de agosto de 1984), outra, sobre a Liberdade Cristã e a Libertação (Libertatis Conscientia, de 22 de março de 1986). Estas últimas, endereçadas à Igreja universal, têm, para o Brasil, uma inegável relevância pastoral." Depois, a carta toca num ponto nevrálgico:
"Estamos convencidos, nós e os senhores, de que a Teologia da Libertação é não só oportuna, mas útil e necessária. Ela deve constituir uma nova etapa - em estreita conexão com as anteriores - daquela reflexão teológica iniciada com a tradição apostólica e continuada com os grandes padres e doutores, com o magistério ordinário e extraordinário, e, na época mais recente, com o rico patrimônio social da Igreja. Penso que neste campo a Igreja no Brasil possa desempenhar um papel importante e delicado ao mesmo tempo: o de criar espaço e condições para que se desenvolva, em perfeita sintonia com a fecunda doutrina contida nas duas citadas Instruções, uma reflexão teológica plenamente aderente ao constante ensinamento da Igreja em matéria social e, ao mesmo tempo, apta a inspirar uma praxis eficaz em favor da justiça social e da eqüidade, da salvaguarda dos direitos humanos, da construção de uma sociedade humana baseada na fraternidade e na concórdia, na verdade e na caridade."
Continua a análise lembrando que, deste modo, poder-se-ia romper a pretensa fatalidade dos sistemas - incapazes, um e outro, de assegurar a libertação trazida por Jesus Cristo: o capitalismo desenfreado e o coletivismo ou capitalismo de Estado. Tal papel, se cumprido, será, certamente, um serviço que a Igreja prestará ao País e à América Latina, como também a muitas outras regiões do mundo onde os mesmos desafios se apresentam com análoga gravidade. Para cumprir esse papel é insubstituível a ação sábia e corajosa dos pastores. Pede a Deus que os ajude a velar incessantemente para que aquela correta e necessária Teologia da Libertação se desenvolva no Brasil e na América Latina de modo homogêneo e não heterogêneo com relação à Teologia de todos os tempos, em plena fidelidade à doutrina da Igreja, atenta a um amor preferencial não excludente nem exclusivo para com os pobres. O Santo Padre termina a carta com uma exortação:
É dever dos pastores, portanto, anunciar a todos os homens, sem ambigüidades, o mistério da Iibertação que se encerra na Cruz e na Ressurreição de Cristo. A Igreja de Jesus, nos nossos dias, como em todos os tempos, no Brasil como em qualquer parte do mundo, conhece uma só sabedoria e uma só potência: a da Cruz que leva à ressurreição. Os pobres deste País, que têm nos senhores os seus pastores, os pobres deste continente, são os primeiros a sentir urgente necessidade deste evangelho da libertação radical e integral. Sonegá-Io seria enganá-Ios e desiludi-Ios. Permitam-me, irmãos no episcopado, que, com plena confiança, os convide a uma tarefa menos visível, mas de alta relevância, além de profundamente ligada a nossa função episcopal: a de educar para a libertação, educar para a liberdade. Educar para a liberdade é infundir os critérios sem os quais essa liberdade se tornaria uma quimera, se não uma perigosa simulação, e ajudar a reconquistar a liberdade perdida ou a curar a liberdade quando adulterada ou corrompida. Educadores na fé, como nos chama o Concílio Vaticano II, nossa tarefa consistirá também em educar para a liberdade.
A 27 de março de 1986, isto é, 16 dias antes de o cardeal Bernardin Gantin fazer a leitura da fraterna e encorajadora carta aos bispos do Brasil, o papa João Paulo II revogou a pena de “silêncio obsequioso" de 1 ano imposta ao frei Leonardo Boff pelos seus escritos a respeito da Teologia da Libertação. Doravante, o franciscano poderá prosseguir nas suas reflexões de teólogo com o aval da Santa Sé.
A Igreja aprendeu muito desde Martinho Lutero. Foram mais de 4 séculos de repetidas lições de tolerância para apurar a sua sabedoria de conviver com as divergências. Hoje, a Igreja sabe melhor amortecer os impactos das crises que a envolvem e absorver os golpes que sofre, neutralizando-os até a completa pulverização. Sabe, principalmente, capitalizar situações que são adversas. Mestra, portanto, em estratégia política, não seria ela que iria permitir a irrupção de um cisma em qualquer de seus domínios, muito menos na maior nação católica do mundo. Perdem sempre, assim, os que apostam em rachas na Igreja.

A LINHA DA IGREJA

A missão da Igreja no Brasil é a mesma da Igreja universal, reafirmada em documento aprovado pelo Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, órgão que coordena o trabalho das 6.838 paróquias existentes no País. É evangelizadora e de caráter eminentemente pastoral. Isso não significa, absolutamente, que deva omitir-se quanto a problemas sócio-econômicos, na medida em que esses problemas envolvam relevante dimensão moral e ética. A Igreja entende, também, que a ordem política está sujeita à ordem moral e, por isso mesmo, procura sempre definir com suficiente clareza as exigências de natureza moral decorrentes da ação política. Assim, considera seu dever proferir juízo moral sobre as questões que se relacionam com a ordem política sempre que afetarem os direitos fundamentais da pessoa humana ou a salvação das almas.
Acha a Igreja que, na atualidade brasileira, o centro das preocupações pastorais diz respeito aos valores da liberdade e da justiça, da verdade e da honestidade, e, essencialmente, ao valor da participação de cada pessoa na evolução do processo de desenvolvimento do País. Condições peculiares e excepcionalmente difíceis em face da conjuntura sócio-econômica caracterizam a consolidação democrática do País, estando, pois, profundamente interessada no desenrolar dessa transição.
A Igreja nunca teve ambições ou foi animada por intenções políticas de quaisquer espécies. Da mesma forma, jamais pretendeu imiscuir-se em disputas ideológicas ou partidárias. O fato de ter consciência de que seu discurso encontra grande receptividade e tem enorme penetração no seio do povo não a estimula a desviar-se de sua missão, não admitindo, pela mesma razão, a militância partidária por religiosos. Sabe, entretanto, que um pretenso apoliticismo resulta, em termos práticos, numa atitude de concordância com os procedimentos que configuram determinado estilo de exercício do poder político. Daí sua missão também política, porém, na acepção maior do vocábulo.
As mais lúcidas manifestações da Igreja sobre a matéria dizem que o testemunho do Evangelho não pode circunscrever-se ao juízo crítico em face das injustiças de ordem social e à denúncia da situação de pecado da parte dos responsáveis pelo estabelecimento da mesma situação. Mas, sim, agir solidariamente para a edificação de um mundo mais humano e mais digno. Esta a razão que compele a Igreja a proclamar a justiça social e a não aceitar a limitação de sua missão à formulação de princípios rigidamente atemporais.
Entre nós, especialmente, a Igreja participa ativamente como instância não-partidária que defende os requisitos éticos da nação brasileira, procurando estimular a todos os que aceitam o Evangelho e o cristianismo a que sigam retamente na direção da plena restauração da democracia. Exorta permanentemente os cidadãos, os partidos, os grupos, tanto os de governo como os de oposição, a olhar para horizontes mais amplos, sufocando interesses imediatos e mostrando-Ihes que, se agirem egoisticamente, as mais hábeis fórmulas não trarão a paz nem a verdadeira ordem política.
A Igreja considera que a redemocratização do País enfrenta, de um lado, a resistência de minorias inconformadas por perder privilégios e, de outro, o receio de muitos de possibilitar o acesso político de grupos sociais marginalizados às grandes decisões nacionais para reclamar seus direitos. O papa João Paulo II, aliás, advertiu para essa situação de desequilíbrio, na favela do Vidigal, quando em visita ao Rio de Janeiro:
"Fazei tudo a fim de que desapareça, ao menos gradativamente, aquele abismo que separa os excessivamente ricos, pouco numerosos, das grandes multidões dos pobres, daqueles que vivem na miséria, daqueles que vivem nas favelas. Fazei tudo para que esse abismo não aumente, mas diminua, para que se tenda à igualdade social." A mesma recomendação é encontrada na ata da assembléia extraordinária do Sínodo dos Bispos, realizado no Vaticano, aprovada na manhã de domingo, 24 de novembro de 1985:
"Depois do Concílio Vaticano II, a Igreja tornou-se mais consciente da sua missão a serviço dos pobres, dos oprimidos, dos marginalizados. Nesta opção preferencial, que não deve ser entendida como exclusiva, resplandece o verdadeiro espírito do Evangelho. Jesus Cristo declarou bem-aventurados os pobres e Ele mesmo quis ser pobre por nós. Além da pobreza material, há a falta de liberdade e de bens materiais que, de algum modo, pode chamar-se uma forma de pobreza, e é especialmente grave quando a liberdade religiosa é suprimida pela força. A Igreja deve denunciar, de maneira profética, toda a forma de miséria e de opressão, e defender e fomentar em toda a parte os direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa humana. Isto vale sobretudo quando se trata, de defender a vida humana desde o seu início, de a proteger em todas as circunstâncias contra os agressores e de a promover verdadeiramente em todos os seus aspectos."
O Sínodo exprime a sua comunhão com os que sofrem perseguições por causa da sua fé e da promoção da justiça, e reza a Deus por eles. Fala que devemos entender como integral a missão salvífica da Igreja em relação ao mundo. A missão da Igreja, embora seja espiritual, implica a promoção também no campo material. Por isso, a missão da Igreja não se reduz a um monismo, de qualquer forma que ele possa ser entendido. Certamente, nessa missão há uma clara distinção, mas não separação, entre os aspectos naturais e os sobrenaturais. Esta dualidade não é um dualismo. É preciso, portanto, pôr de parte e superar as falsas e inúteis oposições, por exemplo, entre a missão espiritual e a diaconia em favor do mundo.
Retomando o caso brasileiro, na mesma linha de análise de Sua Santidade, a CNBB enxerga como merecedora de atenção especial a questão da espera indefinida dos pobres do País por uma situação menos aviltante, afirmando:
Há anos, décadas e gerações inteiras, que os pobres aguardam o tempo de sua participação. Quando a nação está em crise, sempre são os pobres que têm que suportar os maiores sacrifícios. O fundo do problema político de hoje é a ascensão das massas pobres e marginalizadas, é a questão de saber se, graças às reformas anunciadas, os pobres terão mais oportunidade de levantar a voz e fazer prevalecer suas justas aspirações. Eles sabem que o atendimento dessas aspirações não depende tanto da falta de recursos quanto da falta de uma decisão política empenhada em libertá-los do estado de dependência e torná-los capazes de resistir às solicitações das mobilizações eleitoreiras. Nenhuma reforma logrará consolidar formas estáveis de democracia, se não tomar em consideração a necessidade de abrir espaços para que os trabalhadores e os sem-trabalho, os posseiros expulsos da terra e acusados de subversão, os índios, os subalimentados, as massas sem instrução, sem auxílios de saúde, sem habitação decente, sem emprego estável, sem salário suficiente, cheguem por fim a ser reconhecidos como cidadãos com plenos direitos.
A Igreja julga, finalmente, como equacionamento político e ético corretos de nosso direcionamento para a democracia plena, a observância de aspectos: uma transformação estrutural que provoque a autêntica recuperação do desenvolvimento político e econômico, a nível nacional, como prioridade máxima, e razoabilidade dos meios para alcançar harmonicamente as metas desejadas, com justiça social e sem recursos traumatizantes. Acredita que, com obstinação de propósitos, de um lado, e moderação na execução, de outro, compatibilizaremos de forma ideal o desenvolvimento político e econômico com o desenvolvimento social, fazendo daquele um instrumento para a realização deste.

UNIÃO DOS EXTREMOS

"Pode estar certo de que as comunidades eclesiais de base, por colocarem em prática a doutrina social da Igreja, são o que existe de mais polêmico em toda essa discussão. Para mim, entretanto, é, quando nada, grave erro de estratégia dos companheiros fazer oposição a elas. Não faz sentido, mas os comunistas são muito ciosos de sua condição de vanguardeiros na luta pela libertação do homem do campo e não perdoam a Igreja por arrebatar­-Ihes essa bandeira. Estão enciumados. Note você que, hoje em dia, ninguém fala mais em agitação comunista no campo. Isso é coisa do passado, quase folclore. O que está em moda é criticar a Igreja. Pelo menos, os padres são as maiores vítimas dos trabucos dos jagunços a serviço dos latifundiários. Sim, as coisas mudaram." Essas observações são de um velho dirigente do "Partidão", comunista histórico, com exílio forçado de 18 anos durante os governos militares. Falava do alto dos bem conservados 79 anos de idade, solidamente corpulento, cabeça enorme, cabelos ralos e um bigode de poucos fios brancos. Com os olhos semi-cerrados, semblante sereno, nem se importava com a ventania que levantava uma poeira alta do outro lado do calçadão, na praia deserta, naquela tarde de julho de inverno carioca. Em voz mansa e pausada, como que em transe. As mãos, metidas nos bolsos do blusão grosso, não se animavam sequer a pegar a xícara de café que estava à frente. Ponderou ainda:

"Os comunistas talvez tenham perdido o bonde da história. Estão sendo atropelados e ultrapassados pelos fatos de maneira incrivelmente impressionante na América Latina e no Brasil, em particular. No caso das comunidades eclesiais de base, é também o velho hábito do cachimbo: tudo que vem da Igreja é suspeito. E vão, teimosamente, fazendo o jogo da direita. As comunidades eclesiais de base têm, portanto, dois adversários pela frente: a direita e os comunistas." Continuou falando durante longo tempo, no mesmo tom cadenciado, sobre diversas questões internas do comunismo brasileiro que escapam ao interesse do presente estudo, sempre com os olhos semi-cerrados e as mãos metidas no bolso do blusão grosso, enquanto a ventania levantava uma poeira alta do outro lado do calçadão, na praia deserta, naquela tarde de julho de inverno carioca.
Mas, afinal, que são essas comunidades eclesiais de base que tanto incomodam aos comunistas e à direita?
As CEB’s, abreviadamente, são pequenos núcleos organizados nos meios rural e urbano, congregando cada um reduzido número de pessoas, na maioria assalariados de baixa renda, unidos pelas mesmas motivações psicossociais, que buscam, através da reflexão no Evangelho, um futuro melhor em comunhão com Cristo. Como veremos adiante, são o mais notável fenômeno religioso e pastoral que sacudiu a Igreja nas três últimas décadas.
As primeiras notícias das CEB’s estruturadas na configuração atual vieram, em 1960, de paróquias próximas a Natal, no Rio Grande do Norte, e Volta Redonda, no Estado do Rio. Depois, cobriram praticamente todo o País, sendo hoje, seguramente, mais de 57 mil. Há municípios onde elas são dezenas e um bairro populoso das cercanias de São Paulo tem mais de uma centena. Sua organização não é limitada. Basta que um grupo de pessoas de um lugar decida aglutinar-se em torno de objetivos pastorais comuns, iluminados pelo Evangelho, e terá, então, nascido mais uma CEB. Estima-se que mais de um terço das CEB’s existentes foram formadas por iniciativa de leigos católicos e as outras com articulação partida de religiosos.
Conquanto as CEB’s não distingam o credo de seus participantes, a tendência dominante entre alguns setores do protestantismo é considerá-Ias um retorno a uma etapa historicamente superada no método de conquista de fiéis. Os mais rigorosos encaram-nas mesmo como um recuo à época dos "puxadores de reza" dos lugarejos onde não havia padre. Acreditam que as CEB’s são a retomada do caminho para criar obstáculos ao cres­cimento do protestantismo no meio rural, cujo avanço foi defen­dido pelo Congresso Missionário do Panamá, em 1916. Sem alongar a discussão desse aspecto, a realidade é que as CEB’s parecem, atualmente, o único instrumento de bloqueio à vertiginosa expansão das seitas pentecostalistas no interior do Brasil, sobretudo no meio rural.
Na II Assembléia Geral do Episcopado Latino-americano, realizado em Medellín (Colômbia), em 1968, as CEB’s ocuparam a atenção dos bispos e, na III Assembléia, em Puebla (México), em 1979, foram as vedetes do encontro, juntamente com a Teologia da Libertação. Aí, os prelados já proclamavam que "as comunidades eclesiais de base criam maior inter-relacionamento pessoal, aceitação da Palavra de Deus, revisão de vida e reflexão sobre a realidade à luz do Evangelho" e que "nelas acentua-se o compromisso com a família, com o trabalho, o bairro e a comunidade local". E, ampliando:

“A comunidade eclesial de base, enquanto comunidade, integra famílias, adultos e jovens, numa íntima relação interpessoal. Enquanto eclesial, é comunidade de fé, esperança e caridade, celebra a Palavra de Deus e se nutre da Eucaristia, ponto culminante de todos os sacramentos; realiza a Palavra de Deus na vida, através da solidariedade e compromisso com o mandamento novo do Senhor e toma presente e atuante a missão eclesial e a comunhão visível com os legítimos pastores, por intermédio do ministério de coordenadores aprovados. É de base por ser constituída de poucos membros, em forma permanente e à guisa de célula da grande comunidade."

Segundo levantamento recente, 65 por cento das CEB’s estão situadas na área rural, 20 por cento na área urbana e 15 por cento em zonas rururbanas, isto é, localidades periféricas distantes do aglomerado das cidades, mas com atividades econômicas próprias, embora modestas, incipientes. A maior concentração de CEB’s é no Nordeste, Norte e Centro-Oeste, começando a ficar mais esparsas a partir de São Paulo, caminhando para o Sul. As populações do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, com efeito, demonstram menor interesse por esse tipo de associativismo religioso. Talvez a explicação seja a formação cultural do povo, forjado, como se sabe, em padrões mais europeus, acostumados mais à tradição de reunirem-se em torno do vigário da paróquia e não de líderes leigos.
As CEB’s, conforme necessidades e recursos de cada uma, desenvolvem atividades profissionalizantes, tais como cursos de corte e costura, manicura, datilografia, marcenaria, culinária etc. Freqüente, também, é a formação de mutirões para a construção de moradias populares, escolas fundamentais, postos médicos etc. Além do trabalho de promoção comunitária, as CEB’s cuidam, naturalmente, de reflexão do Evangelho, mas com linguagem inteiramente adequada ao nível cultural da população, conscientizando sempre de que a luta contra a situação de pobreza não é uma atitude subversiva e, muito menos, ofensiva a Deus e que o cristão, portanto, tem o dever de insurgir-se contra ela. Tanto os agentes pastorais, quer sejam religiosos ou leigos, como os líderes das CEB’s, evitam, ao máximo, na comunicação verbal, uma linguagem recheada de vocábulos estranhos ao meio social da comunidade eclesial de base. É a simplicidade, a ausência de afetação, que aproxima e une, que coloca todos à vontade nas CEB’s.
As CEB’s procuram valorizar a participação do leigo na Igreja, direcionam o cristão para a vida comunitária e conscientizam-no da realidade social e dos problemas particulares do seu universo existencial. São as CEB’s que avivam o compromisso da Igreja com a salvação do homem e com a instauração de ordem social justa, livre de mazelas econômicas e políticas que o impedem de ser realmente à imagem e à semelhança de Deus.

FIDELIDADE À IGREJA

Com a retomada do processo democrático no País, era esperado que as CEB’s fizessem uma redefinição de seu papel pois, durante a ditadura militar, a Igreja foi, virtualmente, a única força a contrapor-se ao arbítrio. A pastoral popular deveria esgotar-se com as novas manifestações permitidas de militância política e ideológica. Entretanto, na prática, isso não aconteceu. As agremiações partidárias e demais instituições nominalmente incumbidas da defesa dos pobres e marginalizados pouco acrescentaram à situação anterior e as CEB’s continuaram, então, a preencher aquele vazio no contexto nacional. Evidentemente, muitas pessoas de bons propósitos, mas sem fé e sem religião, que compunham as CEB’s no período da ditadura militar afastaram-se delas a partir daquele momento, já que não mais necessitavam abrigar-se no único reduto em que era tolerada certa atuação social. Houve como que uma decantação natural.
A Igreja sempre foi intransigente no estabelecimento de uma nítida distinção entre as CEB’s e os chamados movimentos populares, normalmente de caráter reivindicativo ou de promoção de aspirações sócio-políticas da grande massa. Não permite que esses sejam confundidos com as CEB’s, as quais está constantemente alertando para a manutenção de suas características de organismos montados pela força explícita da fé. Insiste a CNBB, a propósito:
"A CEB não é um movimento. É nova forma de ser Igreja. É a primeira célula do grande organismo eclesial ou, como diz Medellín, a célula inicial de estruturação eclesial. Como Igreja, a CEB guarda as características fundamentais que Cristo quis dar à comunidade eclesial. A CEB é uma maneira nova de realizar a mesma comunidade eclesial que é o Corpo de Cristo. Por isso mesmo, o ministério ou hierárquico faz parte da CEB. O bispo ou o padre não são de fora, não são meros assessores ou acompanhantes. Sua presença, mesmo não contínua, tem um sentido especial e único, já que, como em qualquer comunidade eclesial, eles tomam presente" o Cristo cabeça."
Dois fatos provam com suficiente vigor a fidelidade da Igreja à intenção de "manter as CEB’s à margem da atividade político partidária. O primeiro, ocorrido em 1982, representado pela injustificada" vitória eleitoral do partido do governo militar - o PDS ­em vários Estados do Nordeste onde as CEB’s são notoriamente hegemônicas em termos de formação de opinião. Uma mobilização política, por mais discreta e frouxa que fosse, teria virado facilmente o resultado das urnas em favor das oposições naquelas regiões e o partido do governo militar sairia fragorosamente derrotado. Mas as CEB’s não se envolveram na disputa e as conseqüências são de todos conhecidas. O outro, mais recente, é a co-optação permanente dos melhores líderes das CEB’s para militâcia no Partido dos Trabalhadores, em cujos quadros encontram o espaço necessário para o exercício de sua vocação política, inibida na comunidade eclesial de base. O PT vai, assim, crescendo às expensas das CEB’s, as quais passam a representar, então, uma espécie de formadora de lideranças para o recrutamento das agremiações partidárias que não Ihes limitam a politização.
Seria extremamente fácil às CEB’s conduzir seus membros para a militância política. Bastaria reter em seus quadros as pessoas, como foi explicado, que estão à busca de espaço para exercitar sua vocação, enquanto as desconfianças e frustrações do passado com políticos profissionais encarregar-se-iam do resto. A gigantesca estrutura de que dispõem as CEB’s em todo o País garantiriam, por outro lado, um desempenho sonhado e jamais alcançado por nenhuma agremiação política em tempo algum.
As críticas feitas às CEB’s escondem, muitas vezes, críticas à própria Igreja. Os questionamentos levantados à atuação das CEB’s dirigem-se, na verdade, ao cumprimento da missão social pela Igreja. A CNBB, aliás, já detectou esse tipo de comportamento e fez a advertência:
"Outro significado bem diverso parece ter o interesse de instituições e grupos extra-eclesiais pelas CEB’s. Aí, com freqüência, o que se nota é a total desinformação, o desejo de manipulação, quando não a intenção de fazer das CEB’s o alvo dos ataques mais gerais à Igreja. Na realidade, o que está em discussão é a missão mesmo da Igreja. O que é repudiado não são as CEB’s em si mesmas e, sim, todo o processo de evangelização voltado para a crítica profética das injustiças e empenhado na construção de uma sociedade mais fraterna. As CEB’s, de maneira simples, mas eficaz, conseguem praticar mais intensamente as exigências da doutrina social da Igreja. Elas tornam visível o compromisso com os pobres. Sua própria existência e atuação é uma denúncia da iniqüidade social que rouba aos pobres sua voz e sua vez. Se as CEB’s sofrem perseguição é por causa da Igreja, do Evangelho, e, assim, elas se constituem herdeiras da bem-aventurança."
Realinhando este estudo a seu tema central, veremos que a questão da ajuda externa a seitas religiosas em processo de crescimento entre nós não terá melhor compreensão, contudo, sem uma ótica do quadro de expectativas políticas existentes fora do País quanto à situação brasileira nesse particular. Referimo-nos, objetivamente, à preocupação de alguns círculos com o comprometimento dos católicos da América Latina com as esquerdas e sua incapacidade de participação no anunciado esforço para conter a escalada do comunismo internacional nesta parte do Terceiro Mundo, segundo o Departamento de Estado americano. Este, também, o motivo porque agregou-se a este trabalho uma exposição mais circunstanciada das diretrizes das comunidades eclesiais de base, através das quais a Igreja expressa mais agressivamente sua vocação social. O papel das CEB’s é de extrema importância naquele mosaico. A seguir, portanto, o enfoque do aludido inter-relacionamento externo e seus desdobramentos.

II
A IDEOLOGIA DOS DEUSES

Os dois terços da população que compõem o multifacetado perfil do protestantismo dos Estados Unidos estão tomados de um misto de excitação patriótica e religiosa com características de uma onda de neo-conservadorismo nunca observada antes dos dois períodos do governo Reagan. Valores tradicionais estão sendo reavivados, ao mesmo tempo em que um revisionismo atinge até os episódios mais traumatizantes da história americana, como a Guerra do Vietnam, vista nos últimos tempos com uma conotação inteiramente diferente para o cidadão comum. Não mais se fala, com efeito, em "guerra suja” e outros qualificativos emocionais despertados pelo fracasso da campanha bélica na distante Indochina e cuja recordação tanto atormenta a memória americana. O estigma de uma intervenção militar desastrada passou a ser considerado como uma cruzada para a defesa dos ideais mais nobres da democracia em perigo.
Agora, articulistas da imprensa e escritores, antigos liberais, enfocam a malograda Guerra do Vietnam sob nova perspectiva histórica e muitos têm dedicado, inclusive, artigos e livros à retratação da condenação anteriormente lançada à política intervencionista na Ásia. Tudo isso bem temperado com a apologia do cristianismo salvador numa conjuntura ameaçada por ideologias esdrúxulas, procedentes de um mundo ateu e materialista. Reagan conseguiu adeptos para sua pregação até entre os seguidores de outros credos, como os judeus, por sinal, os mais fanatizados pela nova ordem.
O terço de católicos da população americana, conquanto não faça resistências ostensivas ao ressurgimento do neo-conservadorismo, permanece desconfiado quanto aos rumos que a nova cruzada toma na direção do fundamentalismo protestante. Reagan manobra para afastar esse receio, estando sempre receptivo, em contrapartida, às sugestões para co-optar os mais influentes líderes católicos com postos-chave no Departamento de Estado, Agência Central de Inteligência (CIA) e Departamento de Imigração, entre outros. No final, todos acabam colaborando.
O estilo de Reagan faz muito o gênero americano, tão bem retratado no cinema. É ousado, aventureiro, dado a bravatas e nunca enjeita a luta por uma boa causa. Reagan encarna o modelo que o americano comum admira. Governa os Estados Unidos como se estivesse protagonizando o mocinho de um filme far-­west em que o vilão, inevitavelmente, é derrotado. Pode não ser bem aceito pelos acostumados a métodos mais sutis na solução de intrincadas questões internacionais. Pode não agradar a políticos aos quais repugne, por exemplo, ordenar uma expedição punitiva contra a Líbia ou despachar o exército americano para uma batida policial à procura de cocaína na Bolívia. Pode não ter a "finesse" de um estadista. Mas, que é o herói típico preferido pela esmagadora maioria dos cidadãos do país, isso Reagan é de sobra.
A escalada do neo-conservadorismo de Reagan abre seus tentáculos principalmente sobre a juventude, entre a qual, já em 1984, havia conquistado 62 por cento dos votos. Estudos mais recentes apontam, também, que os jovens estudantes dos Estados
Unidos convivem melhor com as idéias conservadoras do que seus mestres e que a modificação de atitudes nos lares americanos, particularmente quanto ao comportamento cívico dos pais, confirmam a força dessa tendência. Nessa alteração identificam­-se, ainda, preocupantes inclinações quanto ao reconhecimento dos direitos das minorias étnicas, liberdade religiosa e emancipação feminina. A moral calvinista de que o sucesso contempla somente os melhores é presença em tudo, não faltando, todavia, quem afirme ser ela a responsável pela elevação do número de suicídios entre os universitários submetidos a pressões psicológicas em conseqüência da frustração no acompanhamento dos estudos. De fato, os jovens americanos mudaram bastante nos últimos tempos.
O neo-conservadorismo vai, aos poucos, minando todos os círculos de opinião dos Estados Unidos. As vozes que, no passado, faziam-lhe oposição, foram silenciadas ou já não são tão fortes. As idéias de Reagan encontram melhor trânsito em importantes veículos de comunicação de âmbito nacional, como "Com­mentary", "New Republic", "Public Interest" e "Wall Street Journal", para citar alguns. Mas, é na imprensa alternativa, sobretudo a ligada às universidades e aos movimentos estudantis, que reside a sua força extraordinária. Centenas de publicações editadas nessa área, totalizando enormes tiragens, são fartamente subsidiadas por poderosas corporações particulares, as quais, a seu turno, recebem compensadores incentivos governamentais para esse tipo de colaboração com aquelas iniciativas da juventude, pagos diretamente ou através de fundações culturais. As duas mais tradicionais universidades americanasa, Harvard, em Cam­bridge, Massachusetts, e Vale, em New Haven, no Connecticut, ambas fundadas por congregacionalistas no século XVIII, estão ativamente engajadas nesse esquema.
Aspecto marcante desse revigoramento dos antigos valores ético-políticos americanos é sua estreita cooperação com o fundamentalismo protestante. Crescendo assustadoramente nos Estados Unidos desde o princípio deste século, aquela tendência religiosa soube, a partir do início da década 80, celebrar com o neo­conservadorismo em ascensão uma aliança altamente proveitosa aos interesses recíprocos. Um penetrava nas brechas abertas pelo outro e os dois ocupavam espaços novos em progressão geométrica. O casamento perfeito.
A conceituação de fundamentalismo neste estudo é a mesma do Guia Ecumênico aprovado pela CNBB e que o define como uma corrente formada nó seio das igrejas protestantes de reação à interpretação racionalista e liberal da Sagrada Escritura e, em geral, da fé cristã,. Não se trata, porém, de um movimento unificado, mas de inclinações de certos setores que pretendem defender e conservar os elementos fundamentais do cristianismo. Por isso, o fundamentalismo é detectável dentro das mais diversas denominações. Contudo, algumas igrejas, pela sua posição oficial, podem ser consideradas de tendências fundamentalistas. É comparável, na Igreja Católica, ao integrismo. Estabelece, então, o fundamentalismo, resumidamente: infabilidade da Bíblia, virgindade de Maria, ressurreição corporal e segunda vinda de Cristo.
A partir do último quartel do século XVII, o fundamentalismo foi parte discreta da história do protestantismo nos Estados Unidos. Consolidou-se, no entanto, em várias denominações religiosas nos 100 anos passados e entrou com o pé direito no século XX. Cada vez mais agressivo, teve um avanço espetacular. Agora, com a televisão como seu principal veículo de proselitismo, cobre o país de costa a costa com numerosos programas impregnados de misticismo e arrebatamento, realizados nas emissoras locais, explorando, de preferência, as apelativas curas milagrosas diante do vídeo. Em vários lugares, domina a audiência nas tardes de domingo, chegando a serem os seus os únicos programas, no mesmo horário, em diversos canais de uma só cidade. É o caso de Los Angeles. O rádio e a televisão nas transmissões patrocinadas por instituições fundamentalistas insistem sempre em juntar o sentimento religioso conservador à ação política de características conservadoras, união, segundo os pregadores, responsável pela manutenção da hegemonia dos Estados Unidos em um mundo perturbado pela falta de fé e pela ausência do amor a Deus.
Desde 1607, ano em que a Igreja da Inglaterra (Episcopal) ins­talou-se de forma permanente em Jamestown, na Virginia, tem sido costume nos Estados Unidos a criação de escola ligada à igreja. Em 1776, essa tradição foi pactuada, inclusive, pelas autoridades da época com o pastor presbiteriano John Witherspoon, único clérigo a assinar a Declaração de Independência. Nas cinco últimas décadas, porém, subiu a perto de um milhão o número de escolas completamente desvinculadas do protestantismo tradicional, enquanto aumentaram as chamadas escolas cristãs, de inspiração fundamentalista. Muitos pais, evidentemente insuflados por pregadores fundamentalistas chegam a bater às portas da justiça, reclamando contra os ensinamentos considerados impróprios, que as escolas públicas e as filiadas ao protestantismo tradicional ministram a seus filhos. Ora, sabendo-se que, nos Estados Unidos, somente as 265 corporações religiosas existentes estão atrás de 325 mil igrejas e que a maioria destas é ligada a uma escola, isto sem falar na rede pública de ensino, torna-se virtualmente impossível avaliar o volume das ações ajuizadas.
Aconteceu que, a partir de outubro de 1986, a justiça começou a acolher tais ações. Em Hawkins, no Tennessee, e em Mobile, no Alabama, sentenças judiciais impugnaram a adoção compulsória de livros que continham ofensas às crenças religiosas dos alunos fundamentalistas. Agora, os pais, animados assim pelo êxito inicial de suas discordâncias com as escolas públicas e com as que seguem orientação do protestantismo tradicional, insistirão, naturalmente, em novas ações.

REAÇÃO DOS PROTESTANTES

Pesquisas criteriosas mostram que, nos últimos 20 anos, houve uma expressiva perda de substância das igrejas de todas as denominações do protestantismo histórico nos Estados Unidos. A queda de influência daquelas igrejas tradicionais entre o povo, incluindo a Igreja Católica, vai de índices que começam em 16 por cento e chegam a 23 por cento e deveu-se, sobretudo, ao seu crescente envolvimento em questões temporais, que as afastam de posições evangelizadoras mais conservadoras. Admite­-se, tranqüilamente, que o protestantismo já não vive a fase áurea em que, por exemplo, Jonathan Edwards, considerado o maior teólogo americano de século XVIII, arrebatava multidões de fiéis com o "Grande Despertamento", irradiado da Nova Inglaterra para todas as colônias americanas, quando também houve o aparecimento de sua obra A Vontade Livre, livro-texto do calvinismo da época. De fato, o prestígio do protestantismo histórico nos Estados Unidos está em maré baixa.
Do ponto de vista interno, a perda de vigor do protestantismo tradicional, com simultâneo fortalecimento do fundamentalismo, nunca foi objeto de preocupação mais séria para a vanguarda do pensamento político clássico americano. O avanço da onda conservadora sempre foi crescente e os hiatos liberalizantes no processo de mudança não chegam a comprometer o curso de sua caminhada. É uma característica quase atávica na sociologia do desenvolvimento americano. Assim, quando os fundamentalistas ganham terreno, o mesmo acontece com o neo-conservadorismo, porque, como aduzimos anteriormente, o vínculo do matrimônio entre os dois é de feição indissolúvel.
Sob perspectiva externa, o Departamento de Estado americano, independentemente do partido que esteja no poder - ­republicano ou democrata - não tem maiores ilusões quanto ao que possa representar o protestantismo histórico para seus interesses naquele plano. A prática tem demonstrado que a igreja protestante nos Estados Unidos, não importa qual seja a denominação, pouco ou nada tem contribuído para a implementação das diretrizes americanas fora do país. Outros credos e seitas, ao contrário, têm sido sobremaneira úteis em muitas eventualidades.
Aliás, o protestantismo histórico, de modo geral, não se presta muito a manipulações políticas, pelo menos de maior desenvoltura. É arraigadamente burguês, capitalista ocidental e notoriamente anticomunista. Não é de mudanças políticas radicais. Quando muito, pode chegar a formas brandas do socialismo, como em alguns países da Europa. Mas não passa disso. É acomodado, atemporal, conservador. Não cumpre nenhum papel político. O discurso do protestantismo histórico americano, assim, é igual ao de todos os cristãos oriundos da Reforma do século XVII e se caracteriza notadamente pela pregação da extrema obediência à ordem instituída, não representando, por isso, ameaça ou perigo de qualquer natureza para a classe dominante.
Entretanto, no Brasil, o quadro apresenta nuanças peculiares. Pode-se afirmar precisamente que o protestantismo histórico entre nós não se enquadra no figurino de passividade tão ao gosto dos especialistas do Departamento de Estado americano, dado, em primeiro lugar, à amistosidade de suas relações com a Igreja Católica. As igrejas protestantes, na maioria, vêem com entusiasmo o ecumenismo de João XXIII e se inclinam igualmente pelas teses sociais defendidas pelos católicos. Naturalmente, a postura social da liderança protestante não pode ser comparada com a da Igreja Católica, cujo clero está permanentemente envolvido com os aspectos morais e éticos das questões temporais. Nem por isso sua atitude tem deixado de surpreender aos que estavam habituados a identificá-Ia com uma posição de indiferença em face dos graves problemas sociais que agitam o País.
Conseqüência daquela transformação resultou na união dos protestantes aos católicos para a estruturação do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), do qual participam a Igreja Católica Apostólica Romana, Igreja Cristã Reformada, Igreja Episcopal, Igreja Evangélica de Confissão Luterana e Igreja Metodista, uma "associação fraterna de cristãos que procuram trabalhar juntos, estar em diálogo e superar as divisões e mal-entendidos que os separam".
A concordância em formar o CONIC significa que a maioria das igrejas protestantes é sensível à discussão sob o prisma religioso das questões temporais da contemporaneidade brasileira e a uma participação mais efetiva no encaminhamento da solução dos mesmos. A Igreja Católica vê como encorajadora essa firmeza de comportamento e, sobretudo, como aval para as posições que tem adotado na defesa de aspectos éticos e morais da problemática do País. Assim, não é a única voz a emitir juízo do valor sobre as propostas em discussão na conjuntura nacional. Tem aliados.

Todas as manifestações do CONIC encerram sempre temas de grande alcance social. De Porto Alegre, onde tem sua sede operacional, as mensagens firmadas pelas cinco igrejas que o compõem refletem constantemente a preocupação com questões da maior atualidade:
É necessário mudar. Não podemos continuar na situação atual. Mas é o próprio povo que deve provocar essa mudança. Existe uma virtude fundamental entre nós, que se manifesta muito mais claramente nas camadas populares e que pode ser o grande instrumento de mudança: a solidariedade'. É a partir daí que será possível uma ação consciente em favor da mudança. Todos devem começar por sentir como próprios os problemas que esmagam o irmão. Ou a nação, como um todo, consegue trilhar novos caminhos ou todos acabaremos por afundar no mar de lama que nos circunda. A solidariedade se expressa, de modo coerente, nas diversas formas de organização popular. Neste sentido, as nossas Igrejas têm uma experiência crescente nas comunidades eclesiais de base ou nos diversos grupos de reflexão, círculos bíblicos e movimentos de vários tipos que surgiram durante os últimos anos. Queremos dar uma palavra de incentivo a essas iniciativas e pedimos que, nesses níveis, mais e mais, seja refletida a situação nacional e a responsabilidade dos cristãos, sem distinções denominacionais, sobre ela. Não queremos manipular 'massas' amorfas, mas despertar um povo que reflita. Queremos ajudar o povo para que encontre a coragem de arrependimento e de verdadeira conversão.
As abordagens do CONIC são todas frontais e ousadas, vazadas numa linguagem onde predominam clareza e objetividade. Diz, por exemplo, que, olhando para a situação nacional, reconhecemos que a causa da crise não é só de caráter conjuntural, mas, verdadeiramente, estrutural, tanto no campo econômico quanto no político e no social. Não é só conseqüência de um processo internacional de dominação mas, também, de uma situação nacional injusta, na qual as decisões são tomadas de um modo elitista, sem uma efetiva participação do povo. Nem sequer suas aspirações mais fundamentais, expressas de forma tão modesta­ alimentação, saúde, moradia, educação, trabalho -, têm sido respeitadas. Observa que nenhuma mudança, porém, acontecerá, caso permaneçam as causas estruturais que provocam a situação atual e que, por isso, não podemos concordar com tentativas de solução que continuem a lançar todo o peso do sacrifício sobre os assalariados, os agricultores e as pequenas empresas, enquanto setores bem conhecidos pela opinião pública continuam a acumular ganhos sobre ganhos e lucro sobre lucro. Lembra, então, que já o Profeta Isaías proferiu, em nome de Deus, a sua ameaça: “Ai dos que ajuntam casa a casa, reúnem campo a campo, até que não haja mais lugar, e ficam como únicos moradores no meio da terra".
E, ainda sobre o polêmico assunto:
“Continua até hoje a urgência de uma autêntica Reforma Agrária e uma maior justiça fundiária. A terra se destina a todos. É dádiva do Criador. E não é justo que a maior parte da terra se concentre, às vezes através de incentivos fiscais, nas mãos de poucos que não a utilizam suficientemente para o bem comum, enquanto milhares e milhares de brasileiros. que querem e precisam trabalhar. não têm o chão necessário para garantir a sua subsistência e a da sua família. Igualmente. urge que nossOS índios tenham salvaguardados os seus direitos de seres humanos e garantidas as suas áreas nativas."

BOM EXEMPLO

O CONIC é a mais fascinante experiência de convivência ecumênica conjugada ao tratamento da problemática brasileira. Este aspecto, aliás, é a razão primeira e principal da sua existência. Caminhando com esperança e a aceitação recíproca das igrejas-membros, o órgão dinamiza nas comunidades eclesiais e no povo em geral a compreensão de que a participação solidária é responsabilidade de todos no enfrentar as grandes questões que estão a desafiar o esforço nacional para a sua superação. O CONIC assim o faz em caráter sistemático, com a publicação de manifestos e declarações que abordam fatos e questões da maior importância da vida do País e dos cristãos brasileiros, promovendo conferências e seminários ecumênicos de âmbito nacional com a participação de todas as entidades eclesiais que atuam em nosso território, bem como de organismos do exterior. É uma atuação que situa o CONIC em confronto direto com os problemas nacionais e internacionais com implicações para o povo e a nação brasileira.
O CONIC foi pioneiro na mobilização dos diversos setores da opinião pública para a luta pela redemocratização do País, isto durante a fase dura da repressão imposta pelos governos militares. A corrupção administrativa, financeira e econômica, que tanto envergonha os brasileiros, foi, igualmente, denunciada com decisão. Da mesma forma, as conseqüências da dívida externa, o uso abusivo dos agrotóxicos, a depredação da natureza e seus danosos efeitos e o extermínio dos índios estiveram continuamente na pauta de discussões do CONIC, constituindo objeto de enérgicos protestos às autoridades responsáveis. Também a reforma agrária, o conflito no campo, a situação de virtual abandono do pequeno agricultor, a marginalização dos sem-terra, do meeiro, enfim, todos os aspectos ligados à política fundiária, são temas de especial cuidado do CONIC, que procura conscientizar o povo para sua reformulação justa e social, indispensável tanto ao campo quanto à cidade.
O pastor Augusto Ernesto Kunert, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana e vice-presidente do CONIC, conversando com o repórter em Novo Hamburgo, a 40 quilômetros de Porto Alegre, discorreu longamente sobre o alto significado, em termos de convivência ecumênica, para as igrejas-membros, do desempenho daquelas tarefas comuns pelo órgão que as reúne. Salientou que isso torna efetiva a aproximação das mesmas e promove a aceitação mais cristã da responsabilidade de cada uma no estabelecimento da paz, da justiça social e do bem-estar coletivo, inseparáveis da doutrina de Cristo. Observou, assim, que, respeitando as concepções eclesiológicas de cada igreja-membro, o CONIC contribui para um novo relacionamento entre elas e colabora para o maior respeito e reconhecimento mútuo, afastando as antigas rivalidades que tanto angustiavam a cristandade no passado. Esse reconhecimento mútuo permite a compreensão da responsabilidade comum no serviço em favor da pessoa humana e do povo brasileiro. Este serviço - assim o entendem o CONIC e as igrejas-membros - é um ato de amor, um ato de fé em Cristo.
O pastor Augusto Ernesto Kunert, voltando às mudanças estruturais exigidas pelo País, faz uma séria advertência e manifesta uma esperança:
"O CONIC defende a tese de que somente uma reforma de base, permitindo uma maior justiça social, é a única possibilidade de evitar-se, a médio prazo, uma comoção social com efeitos terríveis para a nação. O envolvimento do CONIC com essa problemática fundamenta-se, unicamente, no Evangelho do amor e da graça de Jesus Cristo. Do amor e da graça de Jesus Cristo, vem-lhe o mandato da unidade e da missão. Simultaneamente, vem-lhe daí o mandato da co-responsabilidade pela causa pública, pelo bem-estar da pessoa humana e pelo bem-comum do povo, pois o serviço é a resposta obediente da fé no doador do amor e da graça. A tarefa proposta ao CONIC pelo Evangelho, praticada com dedicação, alimenta a convicção de uma vivência ecumênica mais ativa das igrejas e reforça a esperança de uma caminhada comum na busca de soluções para os problemas espirituais dos membros das comunidades eclesiais e de soluções práticas e justas no confuso campo político, moral e sócio-econômico que lançou profundo sofrimento sobre o povo brasileiro."
A falta de dados estatísticos relativos à Igreja Católica impede a tentativa de quantificar com exatidão os fiéis das cinco igrejas filiadas ao CONIC. É que, a não ser os precários elementos fornecidos pelo IBGE, não existe nenhuma outra fonte segura para que se proceda a, pelo menos, uma aproximação numérica dos católicos do País. De qualquer maneira, tomando-se como base o Censo de 1980, eles constituiriam 89,1 por cento da população brasileira, ou seja, 115 milhões, arredondadamente, num contingente de 130 milhões de habitantes. Não se discute, evidentemente, o valor e a intensidade da fé desses católicos. A Igreja Evangélica de Confissão Luterana, a Metodista, a Episcopal e a Cristã-Reformada entram com mais de 2 milhões de adeptos, consolidando, assim, a tranqüila maioria que o CONIC representa no panorama religioso do Brasil.
É certo que essa frente ampla de igrejas cristãs poderia ser completa, se dela participassem os batistas, os presbiterianos e outras denominações menos expressivas do protestantismo histórico que atuam no País, elevando, portanto, a pelo menos um milhão a mais o número de fiéis abrigados na mesma união fraterna. Exaustivos esforços, representados por cansativas gestões nesse sentido, foram desenvolvidos pelos animadores da idéia. Mas, em vão. Fortes razões de natureza política entraram em jogo e acabaram sustando o ingresso de algumas igrejas no CONIC. Soube-se, na ocasião, que o centro da mobilização com aquele objetivo estava em Washington, de onde o Departamento de Estado americano comandou as pressões sobre as lideranças de algumas, como a Aliança Batista Mundial, para boicotar a iniciativa, vista como de inspiração católica. Era parte do jogo de bastidores para isolar a Igreja Católica na comunidade cristã da América Latina.

COMEÇA O ATAQUE

A prevenção da política externa dos Estados Unidos contra a Igreja Católica e as tentativas para reduzir-lhe a influência na América Latina são antigas. A bem da verdade, essa prevenção é recíproca e remonta aos tempos em que o colonialismo espanhol, sustentado por aquela, estendia seus domínios à vastidão de terras ao Sul do Rio Nusces e o protestantismo dos imigrantes ingleses expandiam-se para todo o Oeste, a partir das colônias implantadas na Nova Inglaterra. Mas eram adversários cordiais, respeitavam-se.
Mais tarde, estoura a guerra México-Estados Unidos (1846­1848) e os americanos, os vitoriosos, anexam os territórios do Texas, Novo México, Califórnia, Chihuahua, Ceamila e Tamon­lipes. A animosidade contra a Igreja Católica, que tomou partido ao lado do México, fica, então, mais patente, alimentada sempre por um antagonismo que ganha, agora, nova dimensão com as disputas ideológicas que dividem o mundo.
Nos dias contemporâneos, Estados Unidos e Igreja Católica da América Latina percorrem, curiosamente, o inverso da trajetória política do passado, ou seja, enquanto os Estados Unidos marcham acelerados rumo ao conservadorismo, a Igreja Católica da América Latina alinha-se numa postura mais liberal, mais progressista. Antes, era o contrário. Trocam-se, portanto, as posições, mudam-se os papéis.
As relações entre o governo dos Estados Unidos e a Igreja Católica da América Latina começaram, no entanto, a tomar um caminho irreversível de deterioração, a partir do momento em que o Departamento de Estado americano adotou procedimentos por demais ostensivos na manifestação de sua desconfiança quanto ao que considerava dever de lealdade da liderança dos católicos latinos para com a preservação da democracia nos países onde tem hegemonia. A primeira atitude dessa natureza consistiu no estardalhaço que cercou a divulgação de um documento oficial, vazado em linguagem sinuosa, mas expressando de forma inequívoca a suspeita de um comportamento que não era do agrado americano. É o Relatório Rockefeller, elaborado em agosto de 1969 por uma enorme equipe comandada por Nelson A. Rockefeller, então governador do Estado de Nova York, por solicitação pessoal do presidente Nixon, que o utilizaria como subsídio à formulação do seu plano de governo para a América Latina.
Apresentando o documento à opinião pública americana, Ted Szulc, do jornal "The New York Times", escreve longa "introdução" em que observa que, na análise de Rockefeller sobre a "qualidade de vida na América" , é amplamente visível que as forças tradicionais que suportam o velho status da América Latina ­ Igreja Católica Romana e os militares - estão se voltando na direção de atitudes progressistas. À primeira vista - escreve Szulc -, os Estados Unidos consideram isso um fenômeno positivo. Mas, na prática, esse novo estado de coisas está criando um duro dilema para os americanos, e o Sr. Rockefeller está a par desses acontecimentos. Observa, mais, que a Igreja, como ele (Rockefeller) reconheceu, está incentivando agora reformas positivas. Porém, como mostraram os recentes pronunciamentos dos homens da Igreja na América Latina, o jovem clero, os padres-operários e a política católica ativa de esquerda não estão permitindo aos Estados Unidos verem muito mais erros na vida da América Latina. O típico da Igreja - conclui Szulc - é, então, tornar-se um canal adicional a um nacionalismo intenso e, compulsoriamente, ao anti-americanismo.
O Relatório Rockefeller propriamente dito, sempre com a mesma linguagem sinuosa, tem uma ótica original da sociologia da América Latina. O título "A cruz e a espada", por exemplo, começa dizendo que, conquanto ainda não seja largamente reconhecido, o conjunto militar a Igreja Católica encontra-se entre as forças de hoje com o objetivo de alcançar a mutação política e social nas outras repúblicas americanas. Isto é, para ambos, uma nova atribuição. E fato histórico que, há mais de 400 anos, a ação dos militares e da Igreja Católica, agindo em comum com os senhores de terra para garantir a "estabilidade", tem constituído uma das tradições nas Américas. Depois, procura mostrar o oportunismo que representa esse comportamento:
"Poucos imaginam a extensão do contraste que ambas essas instituições estão fazendo com o seu passado. Encontram-se factualmente ganhando a dianteira como forças para a mutação social. econômica e política. No caso da Igreja, trata-se do reconhecimento de uma necessidade de maior aceitação da vontade popular. Quanto aos militares, é o reflexo de uma ampliação das oportunidades para os jovens, a despeito de seus antecedentes familiares.”
O Relatório Rockefeller, a seguir, assinala que os modernos meios de comunicação e a mais disseminada educação têm causado um impulso popular de tremendo impacto na Igreja Católica, tornando-a uma força dedicada à mutação - mesmo revolucionária -, se for necessário. Aí, externa toda a sua desconfiança:
"Atualmente, a Igreja pode se encontrar, de certa forma, na mesma situação dos moços - com profundo idealismo, mas, como resultado, em alguns casos, vulnerável à penetração subversiva; pronta para fazer até a revolução, se preciso, para pôr cobro a injustiças, mas não certa nem quanto à finalidade da própria revolução, nem quanto ao sistema governamental através do qual alcançará a justiça almejada."
A inamistosidade não se esgotou, porém, com a ruidosa divulgação do Relatório Rockefeller. Com efeito, em maio de 1980, os americanos voltam à carga contra a Igreja Católica da América Latina, dessa vez publicando um informe produzido pelo grupo de trabalho denominado "Comitê de Santa Fé" para o Conselho Para a Segurança Inter-americana com sede em Washington, intitulado "Uma nova política inter-americana para os anos 80": O Relatório de Santa Fé, como ficou conhecido, no capítulo em que trata da subversão interna, entre outras medidas sugeridas ao governo dos Estados Unidos com a finalidade de conter a expansão comunista na América Latina, recomenda, na Proposição no. 2 - ­Parte 2 -, que "a formulação da política americana deve isolar­-se da propaganda originária da mídia geral e especializada que é inspirada por forças explicitamente hostis aos Estados Unidos".
O Relatório de Santa Fé entende que a cobertura da realidade política da América Latina pela mídia americana é inadequada e demonstra ser fortemente tendenciosa, favorecendo patrocinadores da transformação sócio-econômica radical dos países menos desenvolvidos, em conjunto com linhas coletivistas. Segundo o informe, reforma e desenvolvimento são sempre indistintos da revolução comunista e pouca atenção da imprensa é dedicada às diferenças geofísicas e sociológicas peculiares entre a GuatemaIa, por exemplo, e a Costa Rica, ou entre Argentina e Peru. Isso resulta no encorajamento de uma concepção errônea de que as únicas alternativas são oligarquias, regimes autoritários que professam o anti-americanismo e alguma forma de populismo de esquerda ou socialismo. Afirma ainda que ativistas utilizam-se da superficialidade do conhecimento sobre determinados países e dos conceitos errôneos sobre suas reais alternativas políticas e econômicas, alimentando uma corrente constante de desinformação que denigre os amigos e glorifica os inimigos. E aponta o que julga relevante:
"A manipulação da informação através de grupos afiliados à Igreja e outros assim chamados lobbies de direitos humanos tem desempenhado um crescente importante papel na deposição dos governos autoritários, porém pró-Estados Unidos, substituindo-os por ditaduras comunistas ou pré-comunistas, anti-Estados-Unidos, de caráter totalitário."
Na Proposição no. 3 - Parte 2 -, é sugerido que "a política externa americana deve começar a opor-se (não reagir contra) à teologia da libertação da forma como é utilizada na América Latina pelo clero da 'Teologia da Libertação', o que é justificado com uma advertência bastante temerária:
"O papel da Igreja na América Latina é vital para o conceito de liberdade política. Infelizmente, forças marxistas-Ieninistas têm-se utilizado da Igreja como arma política contra a propriedade privada e o capitalismo produtivo, infiltrando na comunidade religiosa idéias que são menos cristãs do que comunistas."

O REVERSO DA MEDALHA

Toda a hierarquia da Igreja Católica da América Latina, ainda sem compreender as infundadas suspeitas manifestadas pelo Relatório Rockefeller, viu com tristeza maior que o Relatório de Santa Fé, 10 anos depois, não só reafirmava, como tornava mais enfáticas as desconfianças americanas. A Igreja Católica considerou profundamente injustas as conclusões a que chegaram os dois documentos encampados pelo governo dos Estados Unidos e lembrou, com energia, qual, mais do que força das armas, tem sido o papel da cruz empunhada pelos católicos latinos na contenção da expansão comunista no continente americano. Não aceitava, absolutamente, ser submetida à investigação ou ver seus atos julgados por grupos de trabalho estranhos à Igreja. Era uma atitude desrespeitosa, insólita mesmo, que repelia com toda a firmeza.
A conseqüência desses episódios foi o início de estudos sistematizados pela Igreja Católica, com a finalidade de estabelecer a exata medida do comprometimento de organismos estrangeiros na já notória proliferação de seitas na América Latina e conhecer as implicações de natureza política acarretadas pela invasão dos credos exóticos. Um relatório volumoso, publicado em Bogotá, na Colômbia, a 25 de maio de 1984, sob a responsabilidade do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM), baseado em pesquisa por sua Seção de Ecumenismo (SECUM), revelou então que a atividade desenvolvida pelas seitas na América Latina representa um enorme desafio para o trabalho pastoral da Igreja. Isto porque os métodos e as estratégias adotadas pelas mesmas têm sido eficazes para responder a certos aspectos pastorais em relação aos quais a Igreja Católica se descuidou ou não cobriu plenamente. Seu êxito se explica, principalmente, pelo fato de ter uma resposta apropriada para as necessidades de mudança e renovação exigidas pela sociedade latino-americana.
O informe do CELAM, intitulado "A realidade do avanço das seitas", responsabilizou as seitas por uma tendência generalizada para apresentar a sociedade como decadente e de atribuir essa crise à Igreja Católica, que estaria, assim, excluída da edificação de uma sociedade nova. A agressão contra a Igreja concentra-se na pessoa do Papa, dos bispos e dos sacerdotes, realçando seus defeitos e apontando-os como agentes do mal, necessitados de conversão. A Igreja, em outras palavras, seria a grande rameira que personificaria todo o mal. Através desse expediente, canalizam-se todos os rancores e ressentimentos contra a Igreja Católica. Assim, como opção única, oferece-se aos católicos a oportunidade de desligarem-se das "complicadas estruturas eclesiais" para ingressar em uma igreja mais "à mão", que lhes fale numa linguagem popular baseada em palavras da Bíblia, diferente da estereotipada e incompreensível como a da sua. Nessa comunidade ideal e com essa mensagem que chega ao coração e à mente encontra-se o novo equilíbrio pessoal, a plenitude, uma grande paz, e se sente de modo palpável trabalhar "apenas a graça divina".
Em resposta, o informe do CELAM acusa diretamente os grupos de direita de reagirem contra os esforços de promoção humana e de conscientização social da América Latina, dizendo que eles dão ênfase à "conversão pessoal", sem considerar as "estruturas coletivas" , numa recusa sistemática da realidade objetiva da luta de classes, só esperando um "milagre do Altíssimo para resolver o problema dos explorados". Essa ideologia evidencia apenas o interesse por uma vida fraterno-sectarista que evita encarar os conflitos sócio-políticos. Segundo o CELAM, as seitas que mais claramente manifestam uma política de direita são as pentecostalistas - o grupo mais numeroso na América Latina - e a Igreja da Unificação do Cristianismo Mundial - a seita Moon -, que professa abertamente o anticomunismo. O documento, a seguir, aponta o envolvimento pessoal do presidente dos Estados Unidos:
"A expansão das seitas nos últimos decênios, acompanhada de uma extraordinária proliferação denominacional, é uma prova clara de sua penetração e também de sua influência política. Um aspecto notável nessa relação entre os movimentos sectários e a política é o agrupamento em tomo das tendências que surgem no interior dessas organizações evangélicas: uma corrente de esquerda e outra de direita. No caso dos movimentos de direita observa-se um apoio ao trabalho das comunidades evangélicas e agrupamentos internacionais em países do Caribe, Centro e Sul-América. Isto é conseqüente da política norte-americana do Presidente Reagan, que promulga o apoio às campanhas missionárias em beneficio de seu governo."
Ao analisar as implicações e efeitos dessa situação, o inferno do CELAM observa que a polarização política das seitas repercute fortemente sobre a vida da América Latina e também da Igreja Católica, porque sua influência está mudando a vivência religiosa tanto a nível urbano quanto rural. Tal afirmação pode ser comprovada ao se constatar as inúmeras conversões ao pentecostalismo, Testemunhas de Jeová, Mórmons, entre outras, e observando-se, também, o trabalho incansável de seus missionários. Essa verdadeira migração religiosa demonstra que o povo espera e busca uma solução sacral, ou seja, de natureza religiosa para seus problemas fundamentais.
A polarização das seitas afeta profundamente os movimentos de direita e de esquerda e o aspecto religioso é visto envolvido na luta violenta entre a repressão e a guerrilha. Afirma o relatório que a direita religiosa chega a manipular recursos superiores aos da própria Agência Central de Inteligência (CIA) em algumas áreas, como na Guatemala.
De fato, naquele país as seitas religiosas têm sido, para o exército e o governo em sua guerra contra a guerrilha, tão imprescindíveis quanto as armas automáticas e os helicópteros americanos. É praticamente igual à ajuda das seitas e auxílio militar que provém direta ou indiretamente dos Estados Unidos em apoio aos governos militares direitistas e com o objetivo de acabar com o comunismo na Guatemala. Defensores da presença norte-americana na nação guatemalteca importam dinheiro, política, valores e um esquema religioso pré-fabricado pelas seitas fundamentalistas e proclamam, ali, a união do exército, religião e governo na luta contra a guerrilha. As seitas constituem uma eficaz arma contra-revolucionária e são responsáveis pelos massacres e extermínios, justificados com a Bíblia na mão da ditadura e a "pacificação" como obra de Deus.

EM NOME DE DEUS

O informe do CELAM constatou que a maioria das seitas orienta, seu trabalho de catequese preferencialmente na direção das classes mais necessitadas, as quais procura converter e manter sob sua influência através da assistência social que compreende ajudas efetivas em dinheiro e alimentação. Essa ajuda, com freqüência, representa também prêmio para aqueles que conseguem novos adeptos para as seitas. Do mesmo modo, em países mais pobres é significativa a participação delas nos programas educativos. Cita o caso do Haiti, onde os dirigentes das seitas praticamente apoderam-se das crianças nos berçários e dirigem todo o seu processo educativo até a formação completa, de modo a capacitá-Ias a se tornarem membros, igualmente, dos quadros evangelizadores.
O trabalho de aIiciamento das seitas não se limita a áreas urbanas e envolve os complexos processos migratórios de camponeses até as cidades e as profundas alterações ocorridas nos meios rurais causadas por inúmeros problemas ligados ao desenvolvimento. Para todos os migrantes, incluídos os que são compelidos a se mudar por motivos políticos, as seitas dão esperança, consolo, confiança em si próprios, encontrando, assim, o "sentido da vida". As seitas dedicam um carinho especial às vítimas de perseguições políticas na América Latina.
A problemática das seitas apresenta-se diferente em cada país da América Latina. Assim, por exemplo, se, no Brasil, a preocupação é o vertiginoso crescimento do pentecostalismo, a escalada dos Mórmons é que merece atenção especial no Chile e, na América Central, é a radicalização política dos grupos fundamentalistas que faz a dor-de-cabeça da Igreja Católica. Mas, é interessante notar que, no chamado avanço das seitas, é o pentecosta­lismo que ocupa, invariavelmente, o primeiro plano, pois somente no Brasil, México, Chile e EI Salvador encontramos 93 por cento dos seus adeptos, que constituem, a seu turno, 60 por cento de todos os evangélicos da América Latina.
Comprovou o informe do CELAM que todas as seitas utilizam os mesmos processos para atrair e doutrinar as pessoas em suas reuniões e assembléias. A música e os cantos populares ocupam lugar de destaque na criação de uma atmosfera de confraternização. Ali todos se consideram à vontade, realizados, alvo de atenção. Recebem dons espirituais, não raro algum "ministério" que dá prestígio e um posto representativo na hierarquia. O canto em coro, a oração coletiva em voz alta, as aclamações, as exclamações e os testemunhos vibrantes de salvação e bênção de Deus completam o clima de exaltação e êxtase.
A maioria das seitas é bem recebida no meio popular porque oferece aos crentes alternativas terapêuticas que resolvem inúmeros problemas de saúde física e psíquica. Exercem esse dom de "cura divina" como missão de caridade, mas também o utilizam como meio de pressão e intimidação, sobretudo sobre as pessoas menos esclarecidas, que são ameaçadas de possessão diabólica e maldição, caso discrepem das normas da seita. Aos convertidos, ao contrário, é dada a possibilidade de três importantes experiências: o arrependimento de uma vida pecaminosa e mundana; a conversão, seguida do ritual do "batismo nas águas", o qual marca a regeneração e a consciência plena de estar salvo em Cristo; a santificação completa, aIcançada através do batismo com o Espírito Santo.
Toda aquela transformação é reforçada incutindo-se na pessoa a necessidade de manutenção de um estilo de religiosidade sectária, através de um comportamento ético isolado do mundo. Procura-se, por esse meio, renovar no convertido o sentimento de haver superado sua condição anterior e propõe-se-Ihe uma moral rigorosa, com algumas proibições mas sem sacrifícios exagerados. As verdades devem ser aceitas sem juízo crítico. O fundamentalismo, na interpretação bíblica, dá origem ao individualismo e repudia todo critério de unificação. O comum, então, é a salvação pessoal, sem intermediários. Nisso, justamente, está centrada toda a intensa atividade de proselitismo das seitas, iniciada, via de regra, com perseverante trabalho de doutrinação individual de porta a porta.     
As seitas oferecem proteção e segurança aos convertidos nas diversas situações de crise individual. Têm respostas prontas e objetivas para todas as necessidades imediatas. detendo-se minuciosamente nas questões particulares de cada um. Na interpretação flexível da Bíblia. encontram soluções para os mais complexos problemas existenciais.e saídas relativamente claras e não ambíguas para quaisquer dificuldades do cotidiano. E exercitam isso com extrema convicção, pois consideram-se o único caminho de esperança nesse mundo caótico. os verdadeiros olhos de Deus para conduzir a humanidade aflita e sôfrega de salvação eterna.
Politicamente. as seitas são. em geral, excessivamente submissas à lei. à ordem e às autoridades em todos os níveis. Não criam problemas. É conseqüência do velho medo das perseguições religiosas de outrora em países de maioria católica. quando, a qualquer pretexto ou mesmo sem nenhum pretexto, levantava­-se a polícia contra os crentes. Não sendo politizadas, não querendo transformar a sociedade, mas apenas salvar o homem, suas postulações surgem mais dóceis, mais controláveis, portanto, pela situação dominante. Sem consciência revolucionária, as seitas não representam perigo para o status quo, que as manipula à vontade. Por isso. certos governos estão sempre empenhados em infiltrá-Ias em áreas críticas, a fim de contrapor a sua passividade política ao ativismo religioso em favor da solução de questões sociais, como ocorre freqüentemente com a Igreja Católica.

UM MAPA REDESENHADO

Conquanto o então presidente americano Teodoro Roosevelt, em 1912, percorrendo a Patagônia (Argentina), tenha dito, cheio de mágoa, que “será longa e difícil a absorção desses países pelos Estados Unidos, enquanto forem países católicos". dizer que o incremento à penetração das seitas na América Latina é um projeto ideológico americano pode ser uma assertiva tão fácil e simplista quanto ignorá-Ia. Por mais que se acumulem as evidências que robustecem a suspeita, seria temerário, como já observamos, concluir que haja um plano ordenado e sistemático naquele sentido. Não autoriza o juízo o fato de os Estados Unidos sediarem a totalidade das seitas que de lá desencadeiam o proselitismo sobre a América Latina, podendo também ser coincidência que o grosso do esquema financeiro que sustenta as atividades dos novos grupos religiosos seja da mesma procedência. É preferível adotar uma posição ingênua à primeira vista, do que avançar em acusações carentes de provas, embora os fatos sejam exageradamente auto-evidentes.
Apresenta-se extremamente difícil, quase impossível, redesenhar o mapa religioso da América Latina a partir das primeiras décadas deste século. Fenômenos de um passado recente envolvendo segmentos não-católicos ocorreram com tal intensidade e tamanha rapidez que sequer deram tempo à análise mais profunda ou estatísticas mais exatas para explicá-Ios ou dimensioná-Ios. Um dado, contudo, é incontestável: a Igreja Católica perdeu substância. Se uma quantificação simples não acusa maior diminuição de adeptos, é porque o crescimento populacional cobriu o desfalque. Também as igrejas protestantes tradicionais ou históricas não tiveram a suposta expansão conseqüente da retração do catolicismo. Apenas, como a Igreja Católica, mantiveram ou aumentaram um pouco o número de fiéis em decorrência da elevação da taxa demográfica. A verdade, assim, nesse quadro caracterizado por uma dinâmica de impressionante velocidade é que tem havido um assustador crescimento das seitas e movimentos religiosos exóticos desde o México até o extremo Sul da Argentina.
O melhor entendimento das mutações religiosas na América Latina, daqui para a frente, será alcançado certamente se evitarmos, na medida do possível o emprego do termo evangélico ou evangélicos, cujo significado é diferente em cada lugar. No sul do Brasil, por exemplo, é usado especificamente para designar os membros da Igreja Evangélica de Confissão Luterana. No restante do País, a acepção é mais ampla e tanto serve para chamar todos os protestantes, independentemente de igreja ou denominação, como, também, tem a conotação de "crente", pessoa ligada a um movimento pentecostal. Assim, é conveniente então não o empregar, mesmo porque pode ser confundido e não é sinônimo de evangelical ou evangelicals (no plural), termo largamente usado nos Estados Unidos para designar uma corrente espiritual que conta com mais de 70 milhões de adeptos.
O evangelismo americano, que não é igreja ou denominação particular, é um modo especial de sentir Jesus e não uma doutrina. É um movimento mais identificado com o "avivamento" que animou os grandes pregadores do século XVIII, notadamente George Whitefield e Jonathan Edwards. Enfatiza o aspecto da conversão pessoal e da salvação eterna, em detrimento da dimensão social e histórica do cristianismo, sendo, pois, contra o ecumenismo. Os evangelicals crescem em importância política a cada dia. O presidente Reagan, aliás, com o intuito de obter-lhes o apoio, implantou na Casa Branca um escritório especial para cuidar dessas relações, a exemplo dos que já funcionavam para as igrejas protestantes tradicionais, os católicos e os judeus.
Voltando ao esboço pretendido, vale lembrar que apenas 30 por cento dos 38 milhões de protestantes da América Latina pertencem a igrejas históricas ou tradicionais. A imensa maioria (70 por cento) já é composta de convertidos às novas seitas, notadamente as pentecostais, as quais reivindicam uma fatia cada vez maior na preferência religiosa nesta parte do continente, onde, como se sabe, 340 milhões seriam católicos. Esses números é que assustam o episcopado latino-americano e eles se tomam mais inquietadores à medida em que se constata que o crescimento dos chamados movimentos religiosos livres ou seitas verifica-se a uma taxa anual superior a 15 por cento. Nesse ritmo, pode-se admitir que somente os pentecostais serão, no Brasil, cerca de 40 milhões antes do término do século XX.
O avanço frenético das novas seitas na América Latina, com efeito, é notado imediatamente a partir da fronteira norte do México. Hoje, em contraposição à modesta expansão das igrejas protestantes históricas, os Mórmons, o Movimento Moderno, a Igreja Apostólica Fé em Cristo, a Ciência Cristã, os Discípulos de Cristo e dezenas de outras seitas pentecostais, todas vindas dos Estados Unidos, intranqüilizam a tranqüila supremacia que a Igreja Católica desfrutava no país até um século atrás.
O pentecostalismo mexicano perde em expressão apenas para o chileno e o brasileiro. Tem quase 2 milhões de crentes, boa estrutura, desenvolve intenso trabalho de proselitismo, mantém duas boas publicações regulares, inclusive de larga circulação nacional: "El expositor biblico cristiano" e "Hechos de los apostoles". Mas impressionantes mesmo são os Mórmons, cerca de um milhão no país, cuja perfeita organização dispõe até de um cadastro micro-filmado, com o registro de todos os adeptos no México, arquivado em Salt Lake City, capital espiritual do movimento religioso em todo o mundo.
Aqui, começa a ser sentida a presença das instituições chamadas transconfessionais, que são organizações geralmente fundadas por evangelicals não históricos ou tradicionais, quase sempre fundamentalistas, não subordinadas a nenhuma igreja ou denominação religiosa. A transconfessional não visa a coordenar ou
promover a ação ou trabalho desenvolvido por várias igrejas, pois, nesse caso, seria chamada interconfessional ou interdenominacional, como a Associação Cristã de Moços, que tem 12 mil sedes em 94 países. Sem a participação de católicos, perdem, também, o caráter ecumênico.
As transconfessionais, as faith missions (missões de fé), comumente atuam na área da evangelização, operando ou apoiando missões bíblicas ou executando projetos considerados úteis à fé cristã, sem compromisso denominacional. São mantidas por fundações e por recursos oriundos de grandes corporações empresariais, na maioria multinacionais, e, a seu turno, financiam projetos de outros organismos religiosos ou leigos. As transconfessionais, via de regra, são ligadas a entidades ultraconservadoras e mesmo de direita, portanto, anticomunistas. Velada e subliminarmente empenham-se na aculturação das populações com as quais se relacionam, procurando incutir-Ihes o modo de vida americano, o padrão ocidental cristão e capitalista.

APATIA POLÍTICA

A comemoração dos 100 anos de protestantismo na Guatemala foi marcada pela festejada verificação de que o seu contingente de adeptos ultrapassava a 25 por cento da população, dos quais 84 por cento são pentecostais. Foi uma constatação animadora, em vista da situação anterior ao período Ríos Montt, que registrava 13,9 por cento de protestantes, com os pentecostais girando em tomo de 50 por cento. Mas, o que realmente aconteceu no país para justificar tamanha virada?
De março de 1982 a agosto de 1983, a Guatemala esteve sob a ditadura de Efrain Ríos Montt, um estranho militar graduado pela "Dale Carnegie School" e que subiu diretamente do posto de cabo ao de general e chefe do Estado- Maior do exército guatemalteco, ascensão que teve de permeio uma passagem pelo treinamento americano em contra-revolução no Panamá e a direção do Colégio Interamericano de Defesa, em Washington. Em 1974, apesar da fraude eleitoral, foi fragorosamente derrotado na disputa da presidência da República e seguiu, então, para um período de descanso na Espanha, como diplomata. Quando voltou, em 1978, renunciou ao catolicismo e instalou no país a "Igreja da Palavra de Deus" ou "EI Verbo", uma seita financiada pela missão transconfessional "Gospel Outreach", da Califórnia. E não fez outra coisa a não ser cuidar de assuntos espirituais, construir casas de oração, engajar adeptos, enfim, expandir sua seita, até março de 1982, quando um golpe militar de direita o colocou no poder.
A assessoria de governo de Ríos Montt era toda da Igreja do Verbo e sua administração, afora a liberdade aos esquadrões da morte para o extermínio dos adversários, a cruel perseguição e tortura aos opositores nas cidades e aos guerrilheiros nas regiões montanhosas, foi dedicada ao proselitismo religioso. Essa preocupação tomou a feição de fanatismo, atmosfera ampliada pelas alocuções e pelas cadeias de oração para ajudá-Io, comandadas por Pat Robertson, no programa "Clube dos 700", na televisão americana. Foi a época também aproveitada pelos organismos internacionais para se estabelecerem no país, a exemplo de "Cam­pus Crusade for Christ", "Billy Graham Association", "Club 700”, “Youth With a Mission", "Living Word Comunity", "Gospel Outreach of Pennsylvania", "lnternational Love Lift" , "Vision Mundial", “Instituto Linguistico de Verano" e muitos outros que tomaram a Guatemala de assalto e transformaram-na no principal centro de operações para a América Central e região do Caribe.
A queda de Ríos Montt não fez declinar a grande influência ideológica das seitas e de grupos religiosos minoritários na Guatemala, cumprindo-se cada vez mais o seu objetivo principal, qual seja o de manter o povo afastado das práticas políticas, quase sempre de esquerda em um país pobre. A Assembléia de Deus, a Igreja de Deus do Evangelho Completo, a Igreja Príncipe da Paz e a Igreja de Deus Missionária têm centenas de templos abertos ao povo, merecendo destaque, ainda, a atuação dos adventistas, cujo número de fiéis aumentou muito no país ultimamente.
Em Honduras, fracassaram praticamente todas as igrejas protestantes históricas que se instalaram no país vindas das ilhas inglesas do Caribe. As que resistiram ao peso do isolamento, que Ihes dificultava a ampliação do quadro de missionários, tiveram, por isso mesmo, penetração de reduzida importância e conseguiram conquistar um insignificante número de adeptos. Agora, sobrevivem virtualmente estagnadas e pouco representam do ponto de vista estatístico. Em compensação, registrou-se um êxito espantoso das seitas novas, cuja presença relativamente recente no país já responde por 6 por cento das religiões não católicas, segundo avaliações atualizadas.
Contribuiu para alterar bruscamente o quadro hondurenho a interferência na questão"religiosa das grandes multinacionais que se dedicam à exploração da indústria de frutas no país, quer financiando grupos já existentes, quer promovendo o ingresso na região de missionários pentecostais e fundamentalistas dos Estados Unidos. Las bananeras, como são conhecidas popularmente a "United Fruit" e a "Standard Fruit Companies", empenha­ram-se diretamente no estabelecimento das seitas nas vastas áreas que ocupam, inclusive construindo-lhes templos e proporcionando-lhes facilidades que nunca tiveram as igrejas protestantes históricas.
A guerra civil de anos não tem impedido o florescimento do pentecostalismo em El Salvador, estimado em 75 por cento dos protestantes históricos do país em 1965. Na pequena nação centro-americana, aliás, existem as melhores condições psicossociais para o desenvolvimento rápido e permanente dos movimentos religiosos autônomos, quais sejam, o horror às matanças e o medo da dominação comunista. Bastou, então, estimular no povo inculto o sentimento de culpa e de ofensa a Deus por permitir tal situação para que se conseguisse imediatamente o recolhimento à oração e a adoção de uma atitude de neutralidade propícios à criação da atmosfera de apatia política que tanto tem servido à situação dominante. Esse ponto delicado da questão, a propósito, tem sido a bandeira da "Campus Crusade for Christ", uma organização fundamentalista americana, com sede na Califórnia, fundada por BilI Bright, que trabalha em EI Salvador desde 1978.
“Não podemos nos dar ao luxo de ceder a arma política à esquerda religiosa. Devemos defender corajosamente os princípios que constituem a América" - afirmou aos salvadorenhos, no verão de 1983, James Watt, membro da Assembléia de Deus e ex-­secretário do Interior dos Estados Unidos, num ataque direto à Igreja Católica. E a advertência não ficou apenas em palavras: a “Campus Crusade" incumbiu-se de amealhar milhões de dólares da Pepsi Cola, Hotéis Holliday Inn, Adolph Coors, Mobile Coca Cola para desencadear a vigorosa campanha "Esta é a Vida" pelo cinema, televisão, panfletos e out-doors, destinada a mobilizar o povo contra o conflito e a favor da política do governo, contra a insurreição. As igrejas pentecostais, então, transbordaram de fiéis e a guerrilha foi contida. Era uma espetacular vitória de BilI Bright na luta contra a transformação dos valores culturais latino-americanos e pela consolidação dos movimentos religiosos autônomos na América Central.

RETALIAÇÕES IDEOLÓGICAS

Em meio a uma situação confusa criada pela obstinação do governo sandinista em subordinar os assuntos religiosos a seus interesses políticos, as seitas na Nicarágua, com o pentecostalismo à frente, vão consolidando sua posição em uma nação agitada pela implantação de uma ideologia nova para um povo sofrido. Agora, os movimentos religiosos autônomos são 83 por cento do protestantismo existente no país e as notícias mais recentes dizem que somente a Assembléia de Deus instalou, nos últimos anos, 350 novos locais de oração em Manágua e no interior, isso sem contar os pertencentes à Igreja de Deus, Associação das Igrejas de Cristo e a Igreja Apostólica Fé em Jesus Cristo, que somam, aproximadamente, igual número. A cada dia, também, surgem grupos novos, como "O Caminho da Meia-Noite", "Relâmpagos", "Os Unitários" , "Só Jesus" e " A Luz Verdadeira", todos abrindo seus templos.
A tônica do governo sandinista no campo religioso tem sido a implacável perseguição às populações miskitas, seguidoras do protestantismo tradicional da Igreja Morávia da costa atlântica e resistente à revolução, e à Igreja Católica, cuja hierarquia recusa, igualmente, a aceitar a tutela do governo, não obstante alguns padres ocupem postos de responsabilidade na alta administração do país.
A sustentação de um confronto ideológico com os Estados Unidos tem provocado retaliações do governo sandinista contra alguns grupos religiosos que tomaram posição ostensivamente contrária à revolução. Os membros da Sociedade Bíblica, de orientação fundamentalista, por exemplo, tiveram que fugir para Miami, enquanto a "Campus Crusade" transferiu-se às pressas para a Costa Rica. Em represália, as duas organizações cancelaram o programa pró-sandinista "A Voz do Evangelho na Revolução", transmitido de uma emissora de propriedade dos dois grupos e produzido por pastores de seitas pentecostais simpáticos ao sandinismo. São os mesmos pastores, aliás, que emitiram, através da Assembléia Geral do Comitê Evangélico para Ajuda e Desenvolvimento (CEPAD), um comunicado, em nome de 37 ritos pentecostais, de apoio aos sandinistas e de exortação aos cristãos americanos para intercederem contra "as atitudes intolerantes e arrogantes dos Estados Unidos em relação à Nicarágua".
O mesmo CEPAD fazia um trabalho de profundidade em favor da nova ordem instituída na Nicarágua, como mobilizar pessoas que não se dispusessem a empunhar armas, mas colaborar com os sandinistas como médicos, enfermeiros, dentistas, engenheiros e artífices em geral, afora apoio logístico, e só retrocedeu no seu plano quando foi ameaçado pelos contra, a facção remanescente do ditador Somoza que, do exterior, luta para derrubar o governo revolucionário.
As seitas pentecostais, a despeito dos reveses políticos, funcionam a pleno vapor na Nicarágua.
A Costa Rica sempre foi uma espécie de zona franca aberta às religiões, sobretudo pela multiplicidade de organizações transconfessionais dos Estados Unidos que fazem base no país para atuar na América Central e no Caribe, sobretudo as mais antigas, como a "Central American Mission" (CAM) e a "Latin American Mission" (LAM), ambas com sede em San José desde as
primeiras décadas deste século. Outras poderosas faith missions, como a "Trans-Word Mission", ali ministram cursos de preparação de missionários para trabalho em várias nações centro-ameri­canas, centralizando também o esquema financeiro de apoio às diversas entidades que operam na região.
Presentemente, 60 por cento dos protestantes costarriquenhos (cerca de 8 por cento da população do país) são pentecostais, sobressaindo-se a Igreja de Deus do Evangelho Completo com, aproximadamente, 250 casas de oração, a Assembléia de Deus, com mais de 200 e a Igreja do Evangelho Quadrangular, também com mais de 200 templos.
O Panamá é o país que tem o maior número de protestantes da América Latina, quase 14 por cento da população. Isso se deve à influência da ocupação americana da Zona do Canal, em 1904, e à imigração de trabalhadores negros das ilhas inglesas do Caribe, já convertidos à fé cristã, durante a época daquela obra. Mas as seitas pentecostais, que já eram 50 por cento dos protestantes do país em 1965, pularam para 71 por cento 20 anos depois, com possibilidade de alcançarem rápido os 90 por cento, devido à imensa força de seu proselitismo.
A Igreja do Evangelho Quadrangular é a mais forte e mantém mais de 300 casas de oração espalhadas pelo país, seguida da Assembléia de Deus.




SIMULAÇÃO LINGÜÍSTICA

A sede é em Huntington Beach, Califórnia, Estados Unidos. Aparentemente, o objetivo da organização, desde 1934, quando foi fundada por William Cameron Townsend, evangelical fundamentalista, é realizar a tradução da Bíblia em línguas e dialetos exóticos, especialmente indígenas, em várias partes do mundo. Mas o disfarce da entidade cultural esconde, na verdade, uma máquina poderosa que desenvolve o trabalho missionário do "Summer Institute of Linguistics Inc.", conhecido na América Latina pelo nome de "Instituto Lingüístico de Verano", organismo operacional da "Wycliffe Bible Translators Inc.". Toda a doutrinação é orientada pelo denominado" International Linguistics Center", associado à Universidade do Texas, em Dallas, que estabelece as diretrizes para as "School for Pioneers". No exterior, tais escolas podem ser encontradas também na França, Inglaterra, Alemanha Ocidental, Austrália, Japão e Coréia.
Dados mais atualizados revelam que o grupo conta com cerca de 5 mil ativistas difundindo a Bíblia em quase 900 línguas e dialetos, em mais de 40 países. A penetração de missionários do grupo em regiões distantes e inóspitas, verdadeiras selvas, é de tamanha envergadura que, em 1963, seus dirigentes viram-se compelidos a fundar a "Jungle Aviation and Radio Service" para dar suporte logístico às suas atividades, empregando, então, pilotos, mecânicos, rádio-técnicos e outros funcionários, os quais, cumulativa­mente, dedicam-se ao proselitismo religioso. Os aviões e helicópteros da empresa têm a abreviatura JAARS pintada na fuselagem e é conhecida das torres controladoras de vôo por essa sigla em todo o mundo.
"O Instituto Linguístico de Verano" dispõe de fartos recursos para aplicação em seus programas na América Latina. Embora não se conheça com precisão o volume das disponibilidades que manipula, as cifras do custeio de operações dão uma idéia aproximada de sua magnitude. Com efeito, apurou-se que, em 1981, por exemplo, foram gastos 35 milhões de dólares na movimentação daquela gigantesca engrenagem em diversos países católicos latinos. O "Verano", em termos de pessoal ativo, é a maior missão religiosa dos Estados Unidos. Em sua órbita de ação, além da América Latina, estão ainda a Indonésia, Austrália, Nova, Zelândia e Filipinas e todo o Sudeste asiático não comunista. Para ampliar o alcance do seu raio de ação, espera incorporar mais 3 mil membros nos próximos 10 anos.
Sérios problemas já ocorreram entre a Igreja Católica e o "Instituto Linguístico de Verano" em algumas nações sul-americanas. Os Bispos de Lima, em certa ocasião, acusaram-no publicamente de usar subterfúgios para forçar a conversão de indígenas da Amazônia peruana. Mas, em 1979, a despeito dos protestos de inúmeros prelados, foi revalidado um acordo permitindo a permanência da entidade no país por 10 anos mais. Também no México, o “Verano" foi proibido oficialmente de funcionar desde 1978. Entretanto, os missionários americanos continuam a exercer livremente a catequese das populações indígenas mexicanas. A situação no Panamá e Equador não é diferente: vetado pelos governos, mas atuando sem ser incomodado, como em Honduras, Bolívia e Suriname.
Na Colômbia, onde Chester Allen Bitterman, missionário do "Verano", foi, após 8 semanas de seqüestro, abandonado morto pelos guerrilheiros do M-19, o governo, em 1974, pressionado pelo "Movimento para a Defesa da Cultura Nacional" , fez uma devassa nas atividades da entidade. A investigação, conduzida pelo inspetor-geral do Exército, general José Carlos Matallana, concluiu que o "Verano" constituía, de fato, grave ameaça à integridade cultural do país, como também à da Venezuela, Peru e Brasil, nações limítrofes. Contudo, um acordo feito pelo governo com a Embaixada americana deixou as coisas exatamente como estavam e irão ficar até 1995, prazo final do ajuste firmado.
A mais grave acusação feita à "Wycliffe Bible Translators Inc.", a empresa tradutora de Bíblias para o "Verano", é a de adulterar os textos sagrados destinados às populações indígenas, enxertando-os com noções falsas relativas ao conceito de autoridade e à supremacia de raças, de modo a tornar os aborígenes mais dóceis e obedientes. São distorções grosseiras, apontadas por estudiosos da Bíblia em várias obras distribuídas pelo "Vera­no". Essa fraude é comumente associada a fantasiosas previsões de tragédias iminentes, tais como terremotos, erupções vulcânicas e vendavais, em terras que se pretendem sejam abandonadas pelos nativos, as quais, a seguir, são compradas a preço vil e tornadas objeto de exploração mineral ou criação de gado em economia de escala por corporações multinacionais.
O "Verano" envolve-se, ainda, em complicadas atividades paralelas à conversão com as Bíblias traduzidas pelo" Wycliffe" . Uma delas é a cooperação com forças militares na repressão à guerrilha, como no Peru, Bolívia e Colômbia. É acusada de fornecer consultores técnicos e guias para facilitar a penetração de tropas em áreas de difícil acesso ocupadas por guerrilheiros, identificando os grupamentos nativos que eventualmente possam colaborar com os insurretos. A isso chama de "pacificação" e as autoridades dos países que se têm beneficiado desse tipo de ajuda são unânimes em elogiar o know how do "Verano" no assunto.

Um general boliviano exilado nos Estados Unidos, falando a propósito dessa colaboração, afirmou que, como membro do aparato de repressão de seu país, tinha posição de comando no combate à guerrilha chefiada por Teoponte e pôde constatar, na ocasião, a eficiência do "Verano" nesse campo. Explicou que os missionários forneceram às tropas mapas da área de operação dos guerrilheiros de uma precisão incrível. Os militares receberam, inclusive, todos os dados sobre a composição étnica da população nativa e localização de fontes de produção, acompanhados de informações muito exatas sobre os grupos indígenas que apoiavam os guerrilheiros.
Ideologicamente, as equipes missionárias do “Verano" são visceralmente anticomunistas. Sua doutrinação estabelece mesmo uma ligação entre a ação diabólica de Satanás e o comunismo ateu e materialista. A pregação religiosa faz-se paralelamente ao proselitismo político, usando os estudos lingüísticos apenas para mistificar os dois objetivos. Em verdade, o trabalho do "Verano" é sectário e nada tem de científico, servindo tão­ somente para confundir e descaracterizar línguas, culturas e crenças dos povos indígenas, onde quer que seja desenvolvida. Carecem, todavia, de comprovação as acusações de que a entidade seja subvencionada pela Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos. Embora as evidências sejam fartas, nada se provou de concreto até agora, conquanto necessitem também de explicação a enorme desproporção entre o dinheiro gasto pelo "Verano" para sustentar a sua gigantesca máquina e os modestos recursos obtidos com a simples venda da Bíblia em dialetos estranhos.

É importante observar a atuação desse tipo de organização pois, no Brasil, como veremos adiante, sua presença é marcante.

QUESTÃO DE PRESTÍGIO

Na América do Sul, não considerando o Brasil, objeto de estudo em separado, os grupos pentecostais crescem, em conjunto, a uma taxa anual de 14 por cento. Para melhor situar essa espantosa proliferação, parece-nos suficiente revelar que, no Chile, o pentecostalismo dispõe de quase 3 mil casas de oração e mais de 700 na Venezuela. De outra parte, sustentados pela Assembléia de Deus brasileira, centenas de missionários trabalham em evangelização, nos últimos anos, na Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Venezuela, Colômbia e Equador.
A seita Testemunhas de Jeová tem muita penetração no Uruguai e Argentina, o mesmo acontecendo com a Associação do Espírito Santo para a Unificação do Cristianismo Mundial, a seita Moon, que montou em Montevidéu um verdadeiro império econômico, gerindo um banco, um jornal, uma editora, um hotel de turismo e a exploração do jogo permitida no país, de lá espalhando-se para o Paraguai, Bolívia, Chile e Brasil.
Os grupos pentecostais já conquistaram 15 por cento da população chilena, mas são os Mórmons, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, que, a partir dos anos 80, começaram a disseminar-se com extraordinária rapidez, colocando-se em um bem posicionado terceiro lugar na preferência religiosa dos chilenos. Entretanto, quaisquer que sejam os desdobramentos do impasse institucional do país, os registros históricos não podem deixar de consignar, ao se analisar o problema das seitas, a luta travada nos bastidores da política da nação andina intimamente relacionada às suas mutações religiosas de maior atualidade.
Na verdade, a Igreja Católica, há muito tempo, esforçou-se para estabelecer no Chile um amplo diálogo nacional que culminasse na volta do país à normalidade institucional, encerrando o terrível ciclo de violência, terrorismo e torturas. Mas, infelizmente, a pretendida solução negociada ficou prejudicada pela radicalização dos grupos em antagonismo e pelos interesses contrariados com a redemocratização. Muita coisa entrou em jogo. Envolveu principalmente, no meio católico, uma corrente poderosa, cuja força política vai até à interferência nas sucessões do Vaticano e que nunca esteve disposta a abrir mão do poder em benefício da almejada pacificação chilena.
A "Opus Dei" (Obra de Deus) é uma prelazia pessoal do Papa de âmbito internacional e uma ordem religiosa, segundo decretos de João Paulo II de novembro de 1982, que congrega em todo o mundo mais de 1 mil e 300 sacerdotes e cerca de 73 mil leigos, entre os quais banqueiros, homens de negócios e militares, pertencentes a, aproximadamente, 87 nacionalidades. Fundada na Espanha em 1928 por monsenhor Josemaría Escrivá de Balaguer, foi dirigida por ele até sua morte, a 25 de junho de 1975, quando foi sucedido por monsenhor Alvaro del Portillo. Somente em 1947 sua sede foi mudada de Madrid para Roma, mas o espírito da ordem continua a ser genuinamente espanhol.
A partir de 1935, a "Opus Dei" começou a expandir-se na França e, desde então, nunca parou de crescer, incluindo em sua órbita Portugal, Inglaterra, Itália, Irlanda, Estados Unidos e México. Um novo programa determinou, em 1950, a continuidade do esquema de expansão, já agora com a instalação de sedes da prelazia na Holanda, Alemanha, Argentina, Canadá, Venezuela, Japão, Filipinas, Nigéria, Austrália, Quênia, Zaire, Costa do Marfim, Hong Kong e Brasil. A ordem goza inequívoco prestígio junto ao Vaticano, sob o pontificado de João Paulo II, desbancando os jesuítas de mais de quatro séculos na assessoria política da Santa Sé. Aliás, o relacionamento da "Opus Dei" com o Papa é antigo. Começou quando o cardeal Wojtyla ainda era arcebispo de Cracóvia, na Polônia, tendo publicado, inclusive, a coletânea dos seus discursos, contribuindo, assim, para melhorar sua imagem perante o colegiado que escolheria o sucessor de João Paulo I.
Os adversários chamam a "Opus Dei" de "Máfia Sagrada", certamente numa alusão crítica ao fato de estarem incluídas em seus estatutos de constituição cláusulas que proíbem seus membros de se desligarem da ordem após a iniciação e de revelar os nomes de outros membros ou admitirem sua condição de filiados. Os comunistas responsabilizam-na pela promoção, na Espanha, de uma verdadeira Inquisição contra os marxistas, maçons e liberais durante a ditadura Franco, período em que também assumiu a direção de várias universidades e chegou mesmo a controlar metade do governo falangista. A nível mundial, acusam-na de uma posição favorável a todos os governos totalitários de direita e de ser um prolongamento da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos, onde os católicos latinos pertencentes à ordem dividiriam com os europeus-orientais a vanguarda do serviço clandestino da CIA. Todavia, o que mais incomoda os inimigos da "Opus Dei" parece ser a ingerência que teria sobre 52 estações de rádio e de televisão, 36 agências noticiosas e 12 companhias filmadoras, bem como centenas de publicações em todo o mundo. Sem dúvida, um imenso potencial de fogo na área de comunicação.
No Chile, a "Opus Dei" complicou-se bastante numa novelesca seqüência de acontecimentos desde a queda do socialista Salvador Allende, protagonizada pelos militares leais a Pinochet, os tecnocratas do Instituto Geral de Estudos (IGS) que dominaram o governo, a polícia secreta DINA, a Igreja Católica, a CIA e o Departamento de Estado americano. Os lances mais emocionantes desse enredo foram vividos com o assassinato, nos Estados Unidos, dos exilados Orlando Letelier e Ronni Moffitt, executados por ex-agentes da CIA, com a autoria intelectual da DINA, e que a imprensa americana, com apoio de provas colhidas pelo FBI, procurou atribuir aos militares chegados a Pinochet, com o propósito claro de desacreditá-Ios ainda mais perante a opinião pública mundial. Nessa trama, ficou evidenciado o esforço dos tecnocratas do IGS, quase todos filiados à "Opus Dei", em incriminar a DINA que, em contra-ataque fulminante, neutralizou de plano pelo menos três personalidades pertencentes à ordem: Herman Cubillos, ministro das Relações Exteriores, foi assassinado; o presidente do jornal "EI Mercúrio", encontrado morto em circunstâncias misteriosas; e o editor do mesmo matutino recebeu uma carta-bomba pelo correio.
A “Opus Dei", orientadora do grupo do IGS que dominou o governo, naturalmente nunca admitiu nenhum movimento que pudesse desestabilizar e afastar Pinochet do poder, objetivo, aliás, implícito no diálogo nacional proposto pela Igreja Católica. Para a ordem, o ditador sempre foi a única garantia efetiva contra a dominação comunista do país, já esboçada no governo Allende. Enquanto isso, Pinochet, em represália à oposição da Igreja Católica, encorajou por todos os meios a disseminação das seitas no Chile. Escancarou-o, praticamente, aos pentecostais e Mórmons. Facilitou, por exemplo, o ingresso de missionários estrangeiros, concedeu-Ihes isenções tributárias em todos os empreendimentos e financiamentos, até, para a construção de templos. Em compensação, os pentecostais e Mórmons mantiveram seus crentes afastados da contestação a Pinochet. Assim, a penetração dos movimentos religiosos autônomos no Chile teve muito a ver com a grave crise vivida pela nação andina, como dissemos, essencialmente de natureza política.
Finalmente, a preocupação com o crescimento das seitas na América Latina, ao contrário do que se possa supor, não é exclusiva da Igreja Católica. Também as igrejas protestantes históricas, em várias oportunidades, já manifestaram suas apreensões a respeito. O Conselho Latino-americano de Igrejas (CLAI), órgão que congrega as igrejas protestantes do continente, na "Carta do México", assinalou o fenômeno, com uma acusação incisiva:
“Devemos destacar, dolorosamente, o papel que desempenham alguns grupos que a si mesmos chamam de evangélicos, que surgem como seitas nos Estados Unidos, nutridos por dólares e interesses que nada têm a ver com a mensagem libertadora de Jesus Cristo e vêm penetrando em nosso continente, confundindo as pessoas humildes com a sua teologia evasiva, criando ressentimentos e suspeitas em relação do povo de Deus e exacerbando a ânsia de prestígio e poder de alguns líderes evangélicos que se têm prestado para destrutivas manipulações."
O CLAI é considerado esquerdista por governos e instituições conservadoras, sobretudo dos Estados Unidos.

III
EXORCIZANDO FANTASMAS

Quando Gunnar Vingran e Daniel Berg, dois suecos naturalizados americanos, chegaram a Belém do Pará, no dia 19 de novembro de 1910, a bordo de um navio de terceira classe e se alojaram no abafado e calorento porão da Igreja Batista da rua João Balby, dormindo numa só cama, estavam longe de supor que o acontecimento marcava o início do maior fenômeno religioso que um país experimentaria neste século. A viagem fora o cumprimento de uma visão tida em Chicago por outro crente fervoroso, Olof Uldim, segundo a qual, em sonho, aparecera-lhe o nome Pará e a voz do Senhor ordenando-lhe que passasse a Vingran e Berg, amigos inseparáveis, a idéia de pregar a Bíblia naquele remoto lugar. Depois, os próprios destinatários da mensagem divina, orando dias a fio, tiveram a confirmação da chamada sagrada. Arrumaram, então, as malas e, com o auxílio de irmãos de fé, zarparam para a aventura no Brasil. Eram crentes pentecostais.
O surgimento do movimento pentecostal nos Estados Unidos começou no século passado. Por volta de 1890, o pastor batista Daniel Awrey, em Delaware, Ohio, já reunia fiéis em cultos caracterizadamente pentecostais. Sete anos mais tarde, um grupo de crentes realizava uma espécie de convenção na Nova Inglaterra, na mesma época em que se manifestava um avivamento na Carolina do Norte e outro em Minnesota. Em 1900, o Estado do Tennessee promovia uma concentração com centenas de adeptos, com desdobramentos, a seguir, no Kansas, Oklahoma e Texas.
Um encontro com grande público teve lugar em Los Angeles em abril de 1906 e, a partir daí, o movimento espalhou-se pelos quatro cantos dos Estados Unidos. Ultrapassou fronteiras e atingiu a Inglaterra, Suécia, Noruega e chegou até à Índia distante. A mensagem pentecostal disseminou-se com tamanha velocidade que logo foi batizada como "Movimento Pentecostal” e sua divulgação assumida pela revista mensal "Word and Witness" (Palavra e Testemunho), editada em Malvern, no Arkansas, pelo reverendo E. N. Bell, publicação que, mais tarde, fundiu-se com o "Christian Evangel", dando origem ao semanário "The Pente­costal Evangel", de enorme tiragem. Ainda na mesma ocasião foi realizada na cidade de Hot Springs, também no Arkansas, o primeiro Concílio Pentecostal, com grande comparecimento de delegações de várias regiões dos Estados Unidos. Um documento de compromisso de unidade e de cooperação foi aprovado na oportunidade.
Enquanto Gunner Vingren e Daniel Berg permaneciam em Belém do Pará pregando a doutrina pentecostal, mas ainda ligados à Igreja Batista pois, somente a 11 de janeiro de 1918 a Assembléia de Deus foi reconhecida oficialmente como igreja, o pentecostalismo expandia-se cada vez mais nos Estados Unidos e mandava missionários para a China, Índia, África e América do Sul. Com efeito, no outono de 1916, o quarto Concílio Geral realizado na cidade de Saint Louis, no Missouri, aprovava uma declaração relativa às verdades fundamentais, pondo fim à liberdade que cada ministro tinha de interpretar individualmente as Escrituras. A iniciativa abriu caminho para que, no ano seguinte, assembléias independentes solicitassem admissão ao Concílio e um elevado número de congregações requereu e obteve o reconhecimento oficial, ficando institucionalizada, assim, a existência das Assembléias de Deus nos Estados Unidos.

Desde 1918, o cérebro de comando do pentecostalismo mundial funciona em Springfield, no Estado do Missouri, onde um Concílio Geral, com um Presbitério Executivo de 150 membros, decide todas as questões das Assembléias de Deus a nível internacional e exerce as funções de tribunal de apelação em assuntos de caráter ministerial e eclesiástico. O Departamento de Missões Estrangeiras orienta todo o esforço de evangelização do além­ mar e corrige as eventuais discrepâncias doutrinárias ocorridas no exterior. Sustenta aproximadamente 3 mil missionários em plena atividade em mais de uma centena de países, responsáveis pela conversão de milhões de pessoas nos 5 continentes. Para se ter uma idéia do vulto desse trabalho, basta dizer que somente a Assembléia de Deus de Seul, na Coréia do Sul, congrega mais de 500 mil crentes. As despesas financeiras com a catequese são astronômicas.
Em Springfield, Missouri, está, também, o instituto bíblico superior das Assembléias de Deus, o "Central Bible Institute", estabelecimento que centraliza toda a preparação e ordenação de religiosos e fornece diretrizes para outros seminários instalados nos Estados da Pennsylvania, Massachusetts, Illinois, Washington, Flórida, Califórnia, Texas, Oregon e Nebraska. São esses institutos que recebem todos os anos milhares de estudantes e pastores em regime de pós-graduação de todas as partes do mundo, inclusive o Brasil, os quais contam com a facilidade de freqüentar cursos ministrados nos seus idiomas natais.
A Assembléia de Deus dos Estados Unidos lidera, incontestavelmente, as congêneres estrangeiras. É certo, porém, que, ainda que seja mais antiga, tenha menor número de adeptos do que a do Brasil, por exemplo, não há como compará-Ias em termos estruturais e organizacionais. A americana funciona como uma empresa moderna e a brasileira, no caso, ainda se ressente de forte empirismo. Outro aspecto é o gabarito da elite dirigente de uma e de outra. Nos Estados Unidos, os ministros têm formação cultural e religiosa esmeradas, afora o fato de provirem de classes mais bem situadas na escala social, enquanto no Brasil a formação dos pastores, na média, não corresponde às exigências ideais e a grande maioria é originária das camadas mais humildes da população. Esses desníveis, não obstante não tenham maior influência no desempenho geral, estabelecem, todavia, as diferenças nos resultados da ação de proselitismo nos dois países.

O GRANDE APELO

O pentecostalismo que Gunnar Vingren e Daniel Berg professavam em Belém do Pará era rigorosamente idêntico ao dos Estados Unidos. Em síntese, pregavam a fé absoluta na Bíblia Sagrada, interpretada de acordo com as tendências do protestantismo fundamentalista, e a existência de um só Deus, eternamente subsistente em três pessoas: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, bem como o nascimento virginal de Jesus Cristo, sua morte redentora, a ressurreição e ascensão vitoriosa aos céus. Constituem também dogmas de fé da crença o batismo bíblico, efetuado por imersão do corpo inteiro de uma só vez na água, atualidade dos dons distribuídos pelo Espírito Santo à Igreja, a segunda vinda pré-milenial de Jesus Cristo em duas fases distintas: a primeira, invisível ao mundo, para reconduzir Sua Igreja à fase que antecedeu à grande tribulação, e a segunda, visível e corporal, para reinar sobre o mundo durante mil anos. Os pentecostais acreditam ainda no Juízo Final, que justificará os fiéis e condenará os infiéis, na vida eterna de gozo e felicidade para os justos e de tristeza e tormento para os pecadores. O ponto alto da doutrina é o batismo com o Espírito Santo, com a evidência inicial de falar em outras línguas.
O batismo com o Espírito Santo é o âmago da experiência do crente. O verdadeiro pentecostal é a pessoa que foi batizada com o Espírito Santo e continua a transbordar da sua virtude. É difícil estabelecer-se com precisão o que é necessário para receber a graça. Isto porque ela ocorre nas mais diferentes circunstâncias, ou seja, quando o crente está orando, estudando a Bíblia ou cantando o hinário pentecostal. Pode, ainda, verificar-se durante o exercício das ocupações habituais diárias. São tantas as situações em que o crente pode estar envolvido no momento da recepção da bênção que se torna impossível mencioná-Ias, tendo respaldo bíblico, porém, as tentativas de busca para que aconteça o batismo com o Espírito Santo.
Para os pentecostais, todos os casos de batismo com o Espírito Santo dão sólida base para afirmar que o ato de falar em línguas. estranhas constitui uma evidência física inicial de que o crente obteve aquela graça. É que entendem que a experiência produz um impacto direto e poderoso sobre a pessoa, fazendo-a cair em êxtase e, naquele estado estático, é levada a proferir palavras em uma linguagem que jamais aprendeu ou ouviu anteriormente. Falar em línguas durante o batismo com o Espírito Santo não só representa um fato marcante para o crente mas, também, transforma-o em um novo cristão, mais realizado, plenamente consciente de sua espiritualidade.
Contudo, se, a partir do batismo com o Espírito Santo, o crente continuar falando em línguas estranhas, o fenômeno passa a outra esfera, que é o dom das línguas propriamente dito, e pode manifestar-se de duas maneiras inteiramente diferentes: línguas interpretáveis e línguas não interpretáveis. Os pentecostais fazem questão de salientar, nesse particular, que o dom das línguas nada tem a ver com a capacidade de falar outros idiomas, ou seja, falar em línguas pela unção do Espírito Santo é "glossolalia", completamente diversa de "poliglotismo". O primeiro está no campo do sobrenatural e a segunda no simples terreno das habilidades humanas. Segundo os pentecostais, falar a Deus em outras línguas é orar com o espírito e no espírito, isto é, orar bem. Através das línguas estranhas, o crente fala e o Espírito Santo comunica a ele a alegria ou as angústias que lhe vão no coração, o que, de outro modo, ao crente não seria revelado.
Os registros pentecostais apontam a senhora Celina Albuquerque, de Belém do Pará, como a primeira pessoa no Brasil a receber o batismo com o Espírito Santo e a falar em línguas sob a sua graça. Foi na madrugada de 8 de junho de 1911, quando estava recolhida a orações em sua residência, fato presenciado por vários crentes. A mesma experiência foi vivida por sua irmã, Maria de Nazaré, no dia seguinte. Por isso, as duas mulheres e mais 19 testemunhas do episódio foram excluídas da Igreja Batista local onde professavam o pentecostalismo, juntamente com Gunnar Vingren e Daniel Berg. Fundaram, então, dias depois, a 18 de junho, a "Missão de Fé Apostólica" que, mais tarde, veio a ser, transformada na primeira igreja da Assembléia de Deus no País.
Gunner Vingren e Daniel Berg impuseram rapidamente aos primeiros convertidos de Belém do Pará o rígido modelo que caracteriza o pentecostalismo dos Estados Unidos. A austeridade, com a condenação dos padrões de tolerância usuais nas demais igrejas, foi o traço marcante da expectativa estabelecida para a conduta dos crentes, enfatizando-Ihes sempre a condição de pecadores e apontando-se-Ihes o caminho da santificação pela conversão completa através da fiel obediência aos princípios da Bíblia. A ordem era combater as tentações de Satanás, fosse qual fosse o sacrifício exigido, vivendo uma existência simples e ascética, despojada de todos os prazeres mundanos. Assim, proibiam-se aos crentes o uso de bebidas alcoólicas, o fumo, os bailes, o cinema, enfim, tudo que significasse futilidade e alienação à realidade a serviço de Deus. Esse comportamento de absoluta sobriedade estendia-se à postura social, como o modo de falar e vestir, inclusive proibição de maquiagem às mulheres. Era a submissão total do crente à religião.
Nesse molde foi conduzido o agressivo pentecostalismo brasileiro até que, a 1.° de julho de 1931, por decisão da convenção nacional realizada no ano anterior em Natal, todas as igrejas da Assembléia de Deus no Norte e Nordeste foram entregues à responsabilidade de pastores brasileiros, enquanto os missionários estrangeiros incumbir-se-iam da expansão no Sul, Sudeste e Centro-Oeste, bem como de dar maior colaboração ao trabalho no exterior, principalmente Argentina, Uruguai, Bolívia, Chile, Venezuela, Colômbia, Honduras e Equador. A Secretaria Nacional de Missões ficaria com a atribuição de orientar e providenciar a manutenção dos pregadores em terras estrangeiras.

FUROR EXPANSIONISTA

Portugal sempre foi alvo constante do expansionismo pentecostal brasileiro. Já em 1913, Gunnar Vingran despachou o português José Plácido da Costa e família de volta à terra para fazer um trabalho missionário entre os seus conterrâneos. A ele junta-se, mais tarde, Daniel Berg, ocorrendo, assim, o estabelecimento de várias unidades da Assembléia de Deus ao norte do país. Em 1921, outro português, José de Matos, também crente de Belém do Pará, prega por todo o território, fundando igrejas no Algarve e nas Beiras, chegando até aos Açores, Madeira e São Tomé. Estima-se em 50 mil o número de fiéis, agrupados em 300 congregações, hoje existentes em Portugal e nas antigas colônias lusas de Angola, Moçambique e Timor.
No Brasil, recente publicação da Assembléia de Deus divide o pentecostalismo em quatro ramos principais e atribui a cada um a seguinte participação percentual no grupo religioso: Assembléia de Deus - 62,6%; Congregação Cristã no Brasil - 22,3%; igrejas pentecostais independentes - 12,8%; igrejas pentecostais ligadas a missões - 2,3. A família pentecostal do país seria formada por cerca de 40 grupos diferentes.
É interessante observar a precisão de dados da composição percentual que caracteriza o quadro pentecostal do Brasil apresentado pela Assembléia de Deus, tendo em vista a precariedade de indicadores nesse campo, constantemente reclamada, aliás, pelos estudiosos da matéria. A própria fonte, ou seja, a Assembléia de Deus, não dispõe de dados confiáveis sobre a sua constituição, sendo certo, ainda, que é a igreja pentecostal que menos conhece a si mesma, sobretudo os termos reais de sua expansão. A estranheza, por idêntica razão, estende-se à afirmação, feita em dezembro de 1986, de que ela, a Assembléia de Deus, contaria com 13 milhões de adeptos e 52 mil casas de oração, assistidos por 10 mil e 500 pastores e assemelhados. Isto em números redondos.
Ora, não há como negar a vigorosa disseminação da Assembléia de Deus no País nos últimos 30 anos. Ela agigantou-se entre nós a altas taxas de crescimento, como, de resto, todo o pentecos­talismo na América Latina. Mas vai uma distância enorme entre a aceitação dessa verdade e os números temerariamente aleatórios e duvidosos atribuídos ao seu contingente de crentes e à quantidade de suas casas de oração, ainda que estas, em grande parte, não sejam mais do que prédios acanhados, modestamente adaptados a fins religiosos. Pelo visto, é um pouco cedo para pretensões tão ambiciosas.
A Assembléia de Deus sempre gozou da merecida fama de expansionista, quer pela agressividade da ação missionária, quer pela propaganda insistente da doutrina. O trabalho da Casa Publicadora do Rio de Janeiro, um enorme prédio de quatro pavimentos na estrada Vicente de Carvalho, ilustra essa competência. Seus 300 funcionários, com efeito, colocam em circulação, mensalmente, 250 mil exemplares do "Mensageiro da Paz", um jornal denominacional, e mais as revistas "A Seara" (25 mil exemplares), "Jovem Cristão" (20 mil), "Círculo de Oração" (25 mil) e "O Obreiro" (20 mil), além de várias publicações trimestrais. São, no conjunto, cerca de um milhão de exemplares rodados todos os meses, simultaneamente à edição de uma média de Cinco livros, o que confere à Casa Publicadora a invejável situação de detentora de mais de 200 títulos. Tem filiais em São Paulo, Brasília, Recife, Joinville, Niterói e Nova Iguaçu.
Na verdade, os pentecostais lêem muito, obedientes a uma advertência feita pela própria igreja:
"Nem os meios de comunicação, como o rádio e a televisão, podem substituir a leitura. Quem não quiser permanecer eternamente medíocre, quem desejar fugir da rotina das conversas em que todos procuram ser engraçados, deve ler pelo menos um livro por mês. Se não o fizer, estará condenado a um mundo mais estreito e mais vazio."
Nos últimos anos, a Assembléia de Deus está empenhada em modificar na opinião pública a imagem de que seja apenas a religião dos humildes, dos pobres. Não que pretenda deslocar a força de sua atuação para outros segmentos sociais. Absolutamente, não tem a intenção de elitizar-se. Contudo, vê com interesse a penetração de sua doutrina no meio mais burguês, especialmente no setor empresarial, entre a classe média alta, de forma a ir perdendo a característica de grupo religioso preferido apenas pelas pessoas de baixa renda. Com essa política, estimulou a organização da Associação de Homens de Negócio do Evangelho Pleno, entidade que já reúne grande número de empresários e promoveu, inclusive, uma grande convenção em Olinda. Do encontro, surgiu a idéia de patrocinar uma cruzada nacional em favor da elaboração da nova Carta, aprovando-se como peça de apoio da campanha um out-door com os dizeres: "A base da Constituinte está aqui: Bíblia".
Essa nova estratégia da Assembléia de Deus, resultante da necessidade de uma ascensão social da igreja, não significa nenhum corte nos laços financeiros que a unem ao Concílio Geral de Springfield, no Missouri, do qual depende doutrinariamente. Pode ser até que não venha a precisar mais de recursos dos irmãos de fé dos Estados Unidos, provendo-se exclusivamente da receita do dízimo, cuja cobrança não descuida, estribada nas Escrituras (Levítico, capítulo 27, versículo 30 a 32; e Malaquias, capítulo 3, versículo 7 a 10), como, aliás, manda a igreja:
"O dízimo é o percentual fixo de 10 por cento de nossa renda entregue na casa do Senhor para o seu serviço. O dízimo é um dos meios do crente expressar o senhorio de Cristo sobre ele e sobre tudo o que temos. O dízimo pertence a Deus, por isso é chamado santo. Não sendo entregue ao Senhor é um roubo. Quando o dízimo não for pago na ocasião, a pessoa deverá acrescentar 20 por cento ao pagá-Io posteriormente."

UMA MULHER DETERMINADA

À época em que inaugurou o "Angelus Temple" , sua primeira igreja em Los Angeles, Estados Unidos, al.o de janeiro de 1923, Aimee Semple McPherson era, aos 33 anos, uma mulher tempe­rada na áspera luta de conversão à Bíblia. Conquanto não fosse bonita, a extraordinária simpatia e a marcante presença emprestavam-lhe uma graça especial. Ainda muito jovem, seguiu com o marido como missionária para trabalhar na China, ali padecendo toda sorte de provações. Contraíram maleita. O esposo não resistiu à enfermidade, morreu e foi sepultado em Hong Kong. Com a filhinha do casal, uma garota de semanas, voltou à América e casou-se pela segunda vez, tendo um filho dessa união, Rof Ken­nedy McPherson, mais tarde presidente da Igreja Internacional do Evangelho Quadrangular.
Aimee, filha única de um casal metodista, nasceu a 9 de outu­bro de 1890, numa pequena fazenda próxima a Ingersoll, Ontário, no Canadá. Moça frívola até os 18 anos, certo dia, depois de uma noite de insônia e angústia buscando pensamentos que a ajudassem a encontrar um rumo na vida, sentiu-se fortemente arrebatada ao ouvir o pregador Robert Semple, que viria a tornar-se seu primeiro marido, dirigir um culto pentecostaI. Em determinado momento, ele falou em línguas estranhas para os fiéis, seguindo a pregação em inglês. Discorria com fluência sobre o pecado, o ar­rependimento e o dom recebido do Espírito Santo. Ela, maravi­lhada, comoveu-se às lágrimas.
Dias depois, Aimee foi batizada com o Espírito Santo, falou em línguas desconhecidas e igualmente recebeu o dom de interpretá-Ias. Casou-se em 22 de agosto de 1908, iniciando, a seguir, intensivo trabalho de evangelização, até que foi parar no Extremo Oriente e ficou viúva.
Aimee tentou sofregamente ser dona-de-casa. Procurou con­centrar-se apenas no segundo marido e nos dois filhos menores e ter como lazer o aprofundamento no estudo da Bíblia. Nada a satisfazia. Adoeceu gravemente: cinco cirurgias complicadas. Mas, milagrosamente recuperada em quinze dias, considerou o seu restabelecimento obra de Deus e iniciou o que seria o seu ministério de dimensões mundiais. Foi em Mount Forest, em 1915, aos 25 anos de idade, sua arrancada para uma carreira de pregadora incansável, época em que realizava os cultos em tendas de lona armadas em terrenos baldios. Percorreu todo o litoral do Atlântico, promovendo milhares de conversões. Nessa ocasião, publicou pela primeira vez a revista trimestral pentecostal "Bridal Call", logo transformada na "The Foursquare World Advance", publicação mensal de grande tiragem, espécie de órgão oficial da Igreja do Evangelho Quadrangular a nível internacional.
Até 1923, Aimee atravessou os Estados Unidos de costa a costa diversas vezes, pregando em tendas de lona, igrejas, auditórios e salas de conferências, e realizou, em 1922, vitoriosa campanha de evangelização na Austrália. Mesmo depois de inaugurar sua primeira igreja em Los Angeles, à qual se seguiram outras, a notável pregadora continuou ativando a evangelização pela América do Norte. Pregou até que a morte a surpreendeu em meio a uma campanha na Califórnia, a 27 de setembro de 1944. Deixou vários livros, quase 200 hinos e 13 óperas de exaltação e glorificação de Jesus Cristo, sendo também a pioneira na instalação de uma emissora de rádio de propriedade religiosa, a Rádio KFSG, inaugurada a 6 de fevereiro de 1924, em Los Angeles. É daquela data o "Life Bible College", instituto aberto naquela cidade para a preparação de missionários.
A Igreja do Evangelho Quadrangular, hoje em mais de 50 países, recebeu este nome em 1922, em Oakland, Califórnia, inspirado, segundo Aimee Semple McPherson, na visão que tivera durante uma pregação de Ezequiel de quatro querubins com quatro rostos simbolizando os quatro ângulos do ministério de Jesus Cristo: o salvador, o batizador com o Espírito Santo, o grande médico e o rei que há de voltar. Antes, chamava-se Igreja do Avi­vamento Contínuo.
A doutrina quadrangular tem nucleamento no Novo Testamento, nos Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, cada qual com sua visão particular de Jesus Cristo. A denominação Igreja do Evangelho Quadrangular está baseada, pois, nos quatro principais benefícios do Calvário: salvação, batismo com o Espírito Santo, cura divina e segunda vinda de Cristo. A concepção da bandeira da igreja, nas cores roxa, azul clara, amarela e vermelha em tiras horizontais, com o número quatro sobreposto a uma cruz num retângulo branco no canto superior esquerdo, aludem, também, a cada um dos quatro aspectos da mensagem cardinal. Todas as doutrinas da Igreja do Evangelho Quadrangular são inteiramente fundamentadas nas Sagradas Escrituras.
A história da igreja no Brasil começa a 27 de novembro de 1913 em Hollywood, a capital mundial do cinema, com o nascimento de Harold Edwin Williams, um fogoso protagonista de papéis secundários em filmes far-west violentos, que abandonou a carreira artística para cursar o seminário "Life", da Igreja Quadrangular Internacional. Mesmo antes de ordenar-se, em 1940, já estava casado com a pastora pentecostal Mary Elisabeth e, depois de formado ocupou, sucessivamente, os cargos de pastor auxiliar, pastor efetivo e supervisor da mocidade do Evangelho Quadrangular em onze Estados americanos.
A vocação de missionário levou-o, entretanto, a abandonar a comodidade da função que exercia nos Estados Unidos ao ser designado diretor de uma escola na Bolívia. Na verdade, porém, permaneceu como pastor de uma pequena igreja em Trinidad, porque sua antecessora no posto recusara terminantemente deixar o lugar para o qual fora nomeado. Com Hermílio Vasquez, pastor peruano, Harold Williams acabou por dar vazão ao desejo reprimido de ser missionário e chegaram a Guajaramirim, no Brasil, em 1946. Pregaram a Bíblia a centenas de caboclos brasileiros.
Depois, foram a Porto Velho e prosseguiram viagem por via fluvial até Belém do Pará. Embarcaram em um cargueiro, desembarcaram em Santos e, por terra, foram esbarrar em Poços de Caldas. Na cidade sul-mineira, fizeram cuidadoso aprendizado da língua portuguesa, o que Ihes deu condições, inclusive, de servirem de intérpretes de missionários americanos em visita ao Brasil.
Harold Williams não se demoraria em Minas Gerais. Irrequieto e dinâmico, muda-se para São João da Boa Vista e, naquela cidade paulista, funda, em 1951, a "Igreja Evangélica do Brasil", corpo ração religiosa de doutrina quadrangular, nos moldes da "International Church of the Foursquare Gospel" de Los Angeles, a qual, a 11 de janeiro de 1958, passaria a chamar-se Igreja do Evangelho Quadrangular, com sede na cidade de São Paulo. Até transferir definitivamente o centro de atividades para a Capital, a igreja funcionou provisoriamente na sala de uma escola à rua Líbero Badaró, perto do Viaduto do Chá.
Àquela altura, o pastor Williams já era bem visto e contava com o apoio aberto do comando da igreja em Los Angeles, que, reconhecendo sua luta, mandou o pastor Raymond Boatright para auxiliá-Io. Trabalhando juntos, conseguiram provocar grave cisão na Igreja Presbiteriana do Cambuci, bairro de São Paulo, e o movimento avivalista ganhou imediatamente a adesão das igrejas de Barra Funda e Água Branca. A seguir, a Cruzada Nacional de Evangelização, nome escolhido para designar a grande divulgação da Bíblia no País, envolveu então toda a cidade e começou a penetrar também no interior do Estado. Por todas as partes, eram armadas tendas de lona vindas dos Estados Unidos para os pregadores americanos e brasileiros que se empenhavam na catequese das massas. Era a vitória da campanha.
Em 1959, uma inspeção do reverendo Loren Wood, supervisor mundial da Igreja do Evangelho Quadrangular, considerou a igreja definitivamente implantada no Brasil. Daí para a frente, seu crescimento não sofreria qualquer solução de continuidade.


DEPENDÊNCIA AMERICANA

A Igreja do Evangelho Quadrangular multiplica-se no País com incrível rapidez. Se a 8 de abril de 1968, data de inauguração do templo-sede na praça Olavo Bilac, em São Paulo, já mantinha em funcionamento várias igrejas na Capital e no interior paulista, a partir daquela época pôde, então, mostrar toda a sua espetacular desenvoltura. Em dezembro de 1968, com efeito, contava orgulhosamente com 2.238 locais de oração no território nacional, compreendendo 810 templos, 437 tabernáculos, 932 salões e 64 tendas móveis. Eram 4.317 congregações organizadas no Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe.
De outra parte, os assentamentos oficiais da igreja somavam, na ocasião, 243.208 adeptos fichados e contribuintes do dízimo (10% por cento dos rendimentos mensais da pessoa), o "que autorizava a afirmar com absoluta segurança que a comunidade quadrangular agrupava mais de um milhão de crentes, assistidos espiritualmente por 1.048 ministros, 925 aspirantes e 5.568 obreiros credenciados. Este notável desempenho, aliás, valia elogiosa referência ao pastor americano George Russel Faulkner, presidente da igreja no Brasil, pela sede mundial da "International Church of the Foursquare Gospel" de Los Angeles. O reverendo Faulkner está no cargo desde 1962 e é muito respeitado nos Estados Unidos pelo excelente trabalho realizado entre nós.
Muitas razões objetivas e subjetivas explicam a velocidade do crescimento da Igreja do Evangelho Quadrangular, mas a perseverança na ação missionária é, sem dúvida, a principal delas. Divulgar a Bíblia por todos os meios disponíveis assume, de fato, caráter obsessivo para os pastores e auxiliares. Para eles, todos devem ser convertidos ao menor espaço de tempo possível, representando, por isso, papel de extrema importância o proselitismo feito pelas tendas móveis e os programas de rádio e de televisão transmitidos permanentemente sob a responsabilidade da igreja, Outro forte apelo é o dom da cura de que se investe o pastor quadrangular, atraindo sempre numerosa clientela ávida de minorar os males físicos que a afligem. É uma prática que se arraigou na igreja desde o ministério de Aimee Semple McPherson e que seu sucessor na presidência do movimento, o filho Rolf McPherson, procura estimular em todos os pastores.
Contribui, igualmente, para o fenômeno, a maior flexibilidade na postura social permitida aos crentes quadrangulares, ao contrário de outros segmentos pentecostais, por demais rigorosos em suas exigências nesse campo. Mesmo assim, os estatutos dizem que "qualquer obreiro credenciado, aspirante ou ministro, que vier a separar-se de seu cônjuge de fato ou de direito e divorciado que vier a manter união extra-conjugal ou contrair novo matrimônio será demitido do seu ministério, incluindo o seu novo cônjuge". A drástica proibição é reforçada com outra: "Não é permitido em nenhuma das categorias do ministério da Igreja do Evangelho Quadrangular o ingresso de pessoas em estado civil amasiado, divorciado ou que venha a contrair novo matrimônio e os que porventura vierem a fazê-Io deverão ser destituídos das suas funções".
A exagerada preocupação com que os quadrangulares perseguem a evangelização justifica, também, o número de institutos bíblicos para a formação de pastores, aspirantes e obreiros credenciados existentes no País. São 14 ao todo e localizam-se em São Paulo, Curitiba, Belém, Porto Alegre, Manaus, Campinas, FIorianópolis, Taubaté, Juiz de Fora, Belo Horizonte, Joinville, Rio de Janeiro, Divinópolis e Poços de Caldas. O maior é o de Belo Horizonte, justamente para atender a demanda da região metropolitana da Capital mineira, que concentra mais igrejas e crentes no Brasil.
A subordinação da Igreja do Evangelho Quadrangular do Brasil à "International Church of the Foursquare Gospel" é absoluta. A esfera de decisão das questões de relevância doutrinária ou administrativa está em Los Angeles. O artigo 26 do Estatuto, por exemplo, é expresso quando determina que o presidente da igreja aqui seja nomeado, formalmente, pela direção da igreja internacional. Essa hierarquia inflexível torna, assim, completa a dependência às rígidas normas estabelecidas nos Estados Unidos. A presença constante entre nós de numerosos missionários americanos empresta, por isso, à supervisão dos trabalhos de evangelização um inequívoco caráter de fiscalização permanente do que faz a igreja brasileira.
Fechando o círculo de subordinação, vem a questão financeira. O "Missionary Cabinet", órgão de gestão dos recursos das igrejas espalhadas pelo mundo, administra toda a movimentação de dinheiro no exterior, competência que acaba por constituir-se em poderoso instrumento de manipulação política. O sistema é restritivo no que concerne às igrejas estrangeiras e, em contrapartida, liberal quanto aos missionários americanos que podem até solicitar recursos financeiros dos Estados Unidos e aplicá-Ios no país onde exercem suas atividades sem qualquer interferência da direção local. A aquisição de avançado centro de computação para controlar a complexa engrenagem quadrangular no País, instalado na sede administrativa em São Paulo, incluiu-se nessa prerrogativa.

OBRA DE RESPEITO

Uma enorme surpresa está reservada, a quem chega à rua Visconde de Parnaíba, na Mooca, em São Paulo. Nada parece com o que foi imaginado. O templo-sede da Congregação Cristã no Brasil é imenso, imponente, mas sua capacidade para acomodar 4 mil pessoas torna-o pequeno nas noites de culto. Predomina ali gente da classe média, muitos descendentes de italianos, mas a grande maioria é de brasileiros genuínos. Aquela multidão, homens trajados com sobriedade e mulheres de véu, separados geometricamente, ora fervorosamente, só interrompidos peJa voz solene do pregador ou pelos cânticos dos fiéis, acompanhados pela banda de dezenas de músicos. O culto nunca termina antes das 11 da noite. Preces, hinos, testemunhos, pregação. Depois, fora da igreja, despedem-se fraternalmente. Os homens beijam os homens e as mulheres o fazem entre si. Homens e mulheres trocam apenas solenes apertos de mãos. Muito respeito. A felicidade, entretanto, está estampada na fisionomia de todos. O pátio de estacionamento defronte vai-se, então, esvaziando aos poucos, com a saída dos carros. Os que foram a pé caminham devagar e enchem a Visconde de Parnaíba e transversais. A saída é ordeira e demorada. Por fim, o silêncio da noite volta àquela parte da Mooca.
A Congregação Cristã no Brasil é a segunda maior igreja pentecostal do País. Vem logo abaixo da Assembléia de Deus em número de crentes, embora seja cerca de um ano mais antiga do que aquela por aqui. É uma experiência religiosa que também veio dos Estados Unidos, trazida por Louis Francescon, um italiano naturalizado americano, nascido a 29 de março de 1866 em Cavasso Nuovo, que morava em Chicago desde 1890. Era um artífice especializado em mosaicos, filiado à Igreja Presbiteriana, na qual chegou a ancião. Casou-se com Rosina Balzano em 1895.
Louis Francescon converteu-se ao pentecostalismo em fins de abril de 1907, passando a freqüentar a missão do reverendo W. H. Durham, na North Avenue, em Chicago, e lá, a 25 de agosto do mesmo ano, recebeu o batismo com o Espírito Santo, expressando-se pela primeira vez em línguas que jamais havia ouvido. A partir de março de 1908, obedecendo ao que chamou determinação divina, abandonou por completo os afazeres habituais para dedicar-se exclusivamente à religião, não obstante fosse pobre e ainda tivesse mulher e seis filhos menores para prover a subsistência. Mesmo assim, seguiu seu destino.
Toda a vida de Francescon voltou-se, então, para o que considerava obra de Jesus Cristo. Dirigiu inúmeras campanhas de evangelização, conseguindo centenas de conversões em Chicago, Saint Louis, Los Angeles e Philadelphia, principalmente. Os americanos de origem italiana tinham por ele especial respeito e consideração. Um homem de comportamento irrepreensível. Por todas as cidades onde pregou, seus seguidores abriram e mantiveram casas de oração.
Guiado pelo que chamou santa revelação, embarcou em Chicago a 4 de setembro de 1909 com destino a Buenos Aires, viajando em companhia de Guglielmo Lombardi e Lucia Menna, dois crentes amigos. Semanas depois, deixaram a Capital Argentina para visitar a família Michelangelo Menna, parente de Lucia, em San Caetano, também Província de Buenos Aires. Lá promoveram vários cultos, atraindo novos simpatizantes para a crença, com o registro de ocorrências sobrenaturais que Francescon considerou maravilhosas. Voltaram a Buenos Aires e abriram uma casa de orações num subúrbio denominado Tigre. Era a semente do pentecostalismo argentino.
A vocação missionária de Francescon levou-o, juntamente com Lombardi, até São Paulo, em março de 1910, onde permaneceram até o mês de abril. Lombardi retornou à Argentina para continuar o trabalho iniciado e Francescon, aceitando o desafio de um ateu italiano de nome Vicente Pievani, seguiu viagem rumo a Santo Antônio da Platina, no Norte do Paraná, para tentar a evangelização naquele lugar. Foi penoso alcançar o destino. Primeiro, a precaríssima estrada de ferro Sorocabana até Salto Grande. A seguir, um trecho de mais de 200 quilômetros por uma região inóspita, dos quais 70 a cavalo, conduzido por um guia índio. Mas valeu a pena. Mesmo implacavelmente perseguido por fanáticos católicos da cidade, lá instalou e deixou funcionando um núcleo da fé pentecostal.
A 20 de junho, Francescon estava novamente em São Paulo, abrindo no Brás, com o apoio de dissidentes presbiterianos e batistas, o que seria a primeira casa de oração pentecostal no País. Voltou aos Estados Unidos em fins de novembro, depois de breve permanência no Canal do Panamá, para continuar sua missão de incansável evangelizador. Esteve no Brasil mais oito vezes para supervisionar o gigantesco crescimento de sua obra, sendo a última em companhia da esposa, em outubro de 1947, quando aqui permaneceram durante um ano. Louis Francescon morreu em Oak Park, Illinois, em 7 de setembro de 1964.
A Congregação Cristã no Brasil está organizada segundo o modelo congregacional americano. Como nos Estados Unidos, é avessa a qualquer tipo de publicidade, não possuindo jornais de propaganda doutrinária, nem literatura religiosa de nenhuma espécie. "Outras luzes não precisamos, nem queremos. O tempo muda sempre, porém, a palavra de Deus é imutável. Mudam os homens, porém, o Senhor é o mesmo, eterno e fiel" - é o ensinamento. A igreja, assim, só tem impresso o estatuto, que resume também sua doutrina, e a tradução de um testemunho de fé de Louis Francescon, editado em Chicago. No mais, tudo se preserva por transmissão oral.
Ao contrário de outras igrejas pentecostais, cuja estrutura e funcionamento muito as tornam parecidas a modernas empresas, a Congregação Cristã no Brasil conta com uma organização singela, sem sofisticação. Tudo é descomplicado. Por exemplo, a ordenação de anciãos. os crentes que presidem os serviços de culto nas casas de oração, desempenhando funções equivalentes às dos pastores, faz-se em escolha colegiada, segundo acreditam, por consenso iluminado pelo Espírito Santo, não mantendo, pois, a igreja, seminários para prepará-Ios. Não dispõe, também, de escolas dominicais para ensinar a Bíblia, nem faz proselitismo em praça pública.
Outra diferença das outras igrejas pentecostais é que a Congregação Cristã no Brasil não adota o sistema de cobrança de dízimo. As ofertas de dinheiro são voluntárias e o crente não tem nenhuma, obrigação de natureza financeira para com a igreja. Em contrapartida, não remunera seus anciãos e colaboradores, norma diversa das demais, onde pastores e assemelhados têm vínculo empregatício, com Carteira de Trabalho assinada, inscrição no lAPAS e todos os direitos sociais inerentes à condição de assalariados.
A Congregação Cristã no Brasil é das igrejas pentecostais a que experimenta a mais dinâmica expansão, com dados de crescimento absolutamente confiáveis. A partir de 1966, com efeito, organiza um relatório anual de atividades contendo os registros de batismo, o que a capacita a conhecer o número exato de pessoas que ingressam formalmente nos seus quadros. Assim, computados ano a ano, até 1986, eles totalizavam 1.015.619 crentes. Não estão aí considerados, portanto, os batismos anteriores a 1966, ou seja, os crentes que receberam o sacramento desde 1910, data da fundação da igreja, a maioria ainda viva. Esse indicador permite, com cálculo bem-aproximado, estimar em, pelo menos, o dobro, isto é dois milhões, o universo de fiéis da Congregação. Nessa estimativa, contam-se, principalmente, pessoas que aderiram à crença pentecostal e que, como é comum acontecer, não convalidaram o batismo recebido na sua igreja de origem, não sendo, pois, registrados.
O relatório indica ainda que o número de casas de oração no País, que era de 2.435 em 1966, pulou para 7.559 em 1986, estando 2.735 em prédios próprios e 4.824 em imóveis alugados ou cedidos. A maioria encontra-se nos Estados de São Paulo (2.460), Paraná (1.095) e Minas Gerais (1.086), espalhando-se as restantes por todas as unidades federativas.

FANTASIA E REALIDADE

A Assembléia de Deus, a Congregação Cristã no Brasil e o Evangelho Quadrangular são as maiores igrejas pentecostais originárias dos Estados Unidos, mas, evidentemente, não são as únicas em funcionamento no País. Existem dezenas e dezenas de outras menores, quase todas fundadas por dissidentes daquelas, algumas até expressivas, como a Brasil para Cristo e a Deus é Amor. A primeira, organizada por Manoel de Meio, em 1955, e a segunda, surgida em 1962, liderada por David Miranda, cunhado de Meio, ambos com passagem pela Assembléia de Deus e Evangelho Quadrangular, das quais, com algumas variações, compilaram praticamente toda a doutrina. Há, ainda, o pentecostalismo ligado às igrejas protestantes tradicionais, os chamados movimentos de restauração e renovação, que envolvem batistas, metodistas, presbiterianos e congregacionais. Esses movimentos, embora permaneçam fiéis às igrejas de origem, agregam o estilo pentecostal às suas práticas religiosas, como o batismo com o Espírito Santo, as orações espontâneas, a permissão de pregação
aos leigos, os testemunhos e os cânticos populares. Constituem uma situação melindrosa, que as igrejas protestantes tradicionais se recusam a encarar com determinação.
O pentecostalismo já representa 75 por cento de todo o protestantismo no Brasil, num ímpeto de crescimento deveras impressionante. Estima-se que ele aumentaria a uma taxa superior a 25 por cento ao ano. As estatísticas, contudo, são imprecisas, a começar pelo IBGE, que não distingue o fundamental com a necessária clareza, ou seja, não diferencia o protestante histórico do pentecostal. As outras fontes também adotam critérios duvidosos, indicadores pouco seguros, como acontece com as informações fornecidas pelas igrejas. Acrescente-se a tudo a preocupação de exagerar. Há, de fato, muita fantasia no assunto. Assim, tomando-se a média das avaliações conhecidas, e para não incorrer em erros mais grosseiros, o mais prudente seria admitir que os pentecostais no Brasil, hoje, estariam entre 12 e 14 milhões de pessoas e que subiriam, pelas projeções feitas, a 40 milhões até o fim do século. Pode faltar rigor estatístico aos números, mas esta é a visão mais aproximada da realidade. Fora disso, teremos apenas especulações destituídas de maior valor.
De qualquer modo, o número de pentecostais - 12 ou 14 milhões - não importa. Nem as próprias igrejas parecem tampouco interessadas em proclamar força e influência. Não perdem tempo com essas veleidades. O que conta é a ação. Vêem - isto sim, é relevante - o homem brasileiro, tanto da cidade quanto do campo, cada vez mais desorientado, perdido entre os apelos de uma sociedade essencialmente consumista, à busca de segurança, orientação e esperança, enfim, de alguma coisa que atenda às suas necessidades mais gritantes ou, quando nada, responda de maneira objetiva às suas indagações mais angustiantes. Nessa hora, cumpre resgatar o náufrago. É preciso então salvar a alma em perigo. Aí, exatamente nesse momento, entra a vasta experiência dos pentecostais em lidar com a massa aflita, a reconhecida prática de oferecer as devidas respostas àquelas questões, em satisfazer ou, pelo menos, acenar com a expectativa de satisfação aos anseios espirituais e físicos da multidão sofredora. A manipulação dos que buscam uma nova perspectiva de vida, via de regra, segue os padrões já testados como eficazes nos Estados Unidos e encontra sua principal arma nos meios de comunicação. A isso se convencionou chamar de evangelização eletrônica, hoje largamente utilizada, porém, com resultado discutível entre nós.
Nos Estados Unidos, os pregadores eletrônicos, um incômodo para as igrejas protestantes históricas, representam um fabuloso negócio de centenas de milhões de dólares movimentados anualmente, predominantemente pelos evangelicals, a corrente fundamentalista, ou born-again (nascido outra vez), como se autodenominam, que abrangeria um universo de 70 milhões de americanos, a maioria de origem batista. Possuem mais de 30 estações de televisão independentes, 600 emissoras de rádio e uma centena de empresas produtoras de TV a cabo e discos. A princípio, os programas religiosos eram transmitidos pelo rádio, mas, desde 1979, a televisão é o veículo dominante, tanto assim que as grandes redes nacionais - CBS, NBC e ABC - tiveram que alterar sua programação para conciliá-Ia com os interesses dos pregadores. Calcula-se em 60 milhões a audiência diária dessa espécie de programa.
O mais destacado pregador da TV americana é Pat Robertson, veterano da Guerra da Coréia, advogado pela Universidade de Yale e graduado em Teologia. Sua apresentação, em rede nacional, é pela manhã, com hora e meia de duração, contando sempre com a participação das importantes personalidades da vida dos Estados Unidos. É um verdadeiro show-man.
Robertson começou em 1961, com uma só emissora em Virginia Beach, no Estado da Virgínia, e hoje a sua "Christian Broad­ casting Network" (CBN) compreende "The 700 Club", proprietário de várias estações de televisão e rádio, inclusive uma emissora de TV que opera no Sul do Líbano - na zona de ocupação judaica -, as produtoras de TV a cabo (CBN Cable) e de discos (CB N Continental) e a "Operation Blessing" , organização de caridade que manipula um orçamento de 50 milhões de dólares.
Em 1977, a CBN fundou uma universidade de comunicação em Heritage, Carolina do Norte, onde forma todos os anos cerca de 800 profissionais de televisão e rádio altamente especializados. Com essa equipe sofisticada de técnicos em vídeo e áudio, Pat Robertson ganhou notoriedade e prestígio e já foi até mesmo cogitado pelo Partido Republicano para concorrer às eleições presidenciais. Ele gostou muito da lembrança do seu nome.
Há grandes pregadores na TV americana. Pesquisa feita no final de 1986, a propósito, mostrou quem são, com as respectivas audiências: Pat Robertson (16,3 milhões de telespectadores), Jimmy Swaggart (9,3 milhões), Robert Schuller (7,6 milhões), Jim Baker (5,8 milhões), Oral Roberts (5,8 milhões) e Jerry Falwell (5,6 milhões). Igualmente populares são Billy Graham e Rex Humbard, os quais, juntamente com Jimmy Swaggart, tornaram-se bastante conhecidos no Brasil. Para se ter uma idéia da capacidade de mobilização daqueles programas religiosos, basta dizer que, no ano de 1985, de acordo com o Imposto de Renda, apenas Pat Robertson, Jerry Falwell e Jim Baker coletaram donativos em dinheiro no montante de 350 milhões de dólares.
Atualmente, a "National Religious Broadcasting", associação que congrega os pregadores eletrônicos, está financiando um audacioso projeto orçado em mais de 50 milhões de dólares que tem a finalidade de colocar em órbita três satélites destinados a conectar seus programas a nível mundial.
No Brasil, os programas religiosos pelo rádio não são novidade. Começaram com a pregação filantrópica de caráter ecumênico de Alziro Zarur, a “Hora da Boa Vontade", iniciada por volta de 1949 na Rádio Globo do Rio de Janeiro e depois continuada em emissora própria, a Rádio Mundial, adquirida em 1956. A constatação da fácil penetração nas massas a custo relativamente baixo foi que despertou os grupos pentecostais para a utilização do veículo, o que tem aumentado assustadoramente de ano para ano. O fato de a Igreja Católica possuir várias emissoras de rádio - cerca de 140 em 1986 - pesou também na decisão de entrar nesse campo.
As incursões na televisão, ao contrário do rádio, ainda são tímidas. Alguns programas levados ao ar no Rio de Janeiro e São Paulo, em canais de baixa audiência, pouco contribuíram ao esforço de evangelização dos crentes através desse meio de comunicação. De fato, ainda estamos muito atrasados e sem recursos para a utilização da TV na pregação eletrônica e a importação de tapes dos Estados Unidos, como o show de Jimmy Swaggart, rodado na Bandeirantes, não tem sido a melhor solução. O desnível cultural do telespectador americano em relação ao brasileiro torna os programas praticamente inaproveitáveis, mesmo para adaptações, afora o exagero da propaganda da ideologia capitalista agregada à evangelização.
O panorama do rádio é diferente. Embora tenha a mania de inflacionar os seus dados, diz a Assembléia de Deus que mantém cerca de 2 mil programas em todo o País, enquanto a Igreja do Evangelho Quadrangular comparece com 373 transmissões diárias ou semanais. A Igreja Brasil para Cristo, do pastor Manoel de Melo, faz programas através de 250 emissoras e a Deus é Amor, de David Miranda, comanda diariamente uma cadeia de 16 estações com "A Voz da Libertação", além da participação de três de sua propriedade: Rádio Universo, de Curitiba; Rádio Itaí, de Porto Alegre; e Rádio Auriverde, de Londrina. Ocupa, ainda, a faixa de 573 outras emissoras para a retransmissão de suas mensagens. A Congregação Cristã no Brasil é a única fora da mídia. Alega razões doutrinárias para não fazer evangelização pelo rádio.
Conquanto olhemos com a melhor boa vontade os nossos pregadores eletrônicos, não se pode deixar de constatar com desalento que os resultados alcançados são insignificantes em relação à quantidade de programas veiculados. É que as apresentações são mal produzidas, sem os mínimos recursos técnicos reclamados pela moderna comunicação, limitando-se elas a uma caricatura, grosseira imitação do que os americanos fazem no gênero. Tirado o mau gosto do emocionalismo, pouco sobra. Sem infra-estrutura, sem pessoal especializado, os programas são de baixo nível e a ausência de pesquisas sérias para aferir sua audiência ro­bustece a suspeita de que tenham menos ouvintes do que os programas sertanejos ou as radiofonizações policiais. Serviriam, portanto, tão-somente para satisfazer a vaidade das pessoas que deles participam, pois não cumprem sua finalidade, ou seja, não convertem, nem fortalecem a fé de ninguém.
De outra parte, observações mais profundas de estudiosos da matéria permitiram concluir que o pentecostal brasileiro adota uma atitude curiosa diante da pregação eletrônica. Sem entender direito a abordagem dos temas sagrados, prefere o comparecimento ao culto, a participação pessoal no clima de poder do ato religioso, a presença na apropriação da fé, ainda que isso torne ­mais penosa a volta à realidade do cotidiano após os momentos de alheamento e elevação proporcionados pelo ofício na casa de oração. Como último reparo, não se pode deixar de registrar o espanto com que líderes pentecostais vêem o esbanjamento do dinheiro da contribuição dos fiéis, o dízimo, para a sustentação financeira das onerosas campanhas religiosas pelo rádio, cada vez faturando mais alto com o cliente cativo. Não excluem sérias desconfianças quanto à possibilidade de percepção de vultosas comissões por cúpidos intermediários. Não estaríamos - perguntam - sendo coniventes com alguma forma de corrupção?

REFORÇANDO O SISTEMA

À exceção da Congregação Cristã no Brasil, único grupo que obedece ao princípio de que "quem ocupa cargos no ministério não deve aceitar encargos políticos", todos os ramos da família pentecostal brasileira estão se enredando irreversivelmente na política partidária. Esse envolvimento começou com a revolução de março de 1964, quando alguns pastores foram encorajados por setores militares hostis à Igreja Católica a concorrer a cargos eletivos. Pretendia-se, com isso, neutralizar a influência do clero progressista e resistente à ditadura sobre o operariado e campesinato. Hoje, percorrendo caminho inverso ao da hierarquia católica, que determinou que os padres se mantivessem afastados das disputas eleitorais, parcela das lideranças crentes a cada dia mais se comprometem com os políticos e os partidos. Das umas de 15 de novembro de 1986, saíram até uma dúzia de pastores pentecostais com mandato de deputado federal e mais de duas dezenas chegaram a deputado estadual.
Todavia, o grosso da militância pentecostal, excluídos os poucos pastores que vêm explorando os votos dos crentes, é completamente apolítico. Somente uma minoria de dirigentes daqueles grupos religiosos, exatamente os que controlam a mídia eletrônica, paga com o dinheiro dos fiéis, aproveitam-se da condição de privilégio do ministério religioso para tirar vantagem do imenso potencial eleitoral que eventualmente manipulam. Esse fisiologismo oportunista de transferência do prestígio da área religiosa para a política tem como principais beneficiários alguns líderes da Assembléia de Deus e da Igreja do Evangelho Quadrangular, cujo comportamento violenta as regras de conduta de seus dirigidos, habitualmente infensos à atividade política, a não ser por uma vigilante postura anticomunista.
É correto admitir também que, eleitos para cargos políticos, aqueles pastores procurem reforçar na massa de crentes uma obediência conformista à situação dominante. A Igreja do Evangelho Quadrangular, inclusive, institucionaliza essa obediência em Estatuto, mandando que os governantes sejam respeitados em todos os tempos (artigo 17). Nada de rebeldias ou reivindicações temporais. A participação política é sistematicamente negada e, em contrapartida, valorizada a resignação, o sacrifício. O crente é um escolhido, um eleito de Deus, e, por isso, deve manter-se à margem das fricções sociais e da luta de classes. Importa-Ihes apenas a salvação da ,alma, o exercício de uma vida plena de dons espirituais enquanto aguardam a próxima vinda de Jesus Cristo.
Os especialistas do Departamento de Estado americano têm dado, igualmente, reiteradas provas do seu particular interesse nessa alienação política dos pentecostais do Terceiro Mundo. No caso da América Latina, fomentam por todos os meios a passividade dos crentes, instruindo abertamente os missionários do Brasil no sentido de que o seu trabalho de evangelização seja sempre norteado pela, preocupação de manter o rebanho pentecostal longe da política, dedicado somente aos misteres espirituais. A mesma doutrinação é feita junto aos pastores brasileiros que vão aos Estados Unidos para cursos de pós-graduação ou programas de intercâmbio. As sociedades transconfessionais americanas, de sua parte, são rigorosas na concessão de recursos para programas filantrópicos, negando-se a apoiar iniciativas que possam ser desviadas para atividades que possibilitem a ação política. A estratégia, enfim, é não permitir qualquer tipo de militância que deságüe numa posição de antagonismo à situação dominante e possa evoluir para um estágio de vulnerabilidade à contaminação esquerdista.
Colocando barreiras à participação política dos crentes, e com o rápido crescimento experimentado pelo pentecostalismo nos países pobres, os especialistas do Departamento de Estado americano acreditam, assim, retardar o avanço do comunismo na América Latina. Mas, quem tira proveito imediato dessa alienação são as ditaduras de direita estabelecidas nos países politicamente atrasados, as quais, desse modo, passam a enfrentar um inimigo a menos, representado por aquele contingente de pobres reivindicantes que seria presa fácil do jogo comunista. Esta a razão pela qual muitos encaram o pentecostalismo, se não um instrumento de sustentação, pelo menos poderoso aliado das formas selvagens de capitalismo praticadas no Terceiro Mundo.
Na arrancada para a abertura de novos espaços, os pentecos­tais colecionam, com sentida mágoa, um vasto dossiê de conceitos emitidos pelas igrejas protestantes tradicionais, sobretudo a Batista, a respeito de suas crenças, com especial ressentimento por um livro editado sob a responsabilidade da Junta de Educação Religiosa e Publicações da Convenção Batista Brasileira (JUERP), chamado "Movimento Moderno de Línguas", de autoria do batista americano Robert Gromacki, que considera o pentecostalismo "uma grosseira mistificação de origem satânica". Na mesma linha está "A Doutrina do Espírito Santo", obra publicada sob os auspícios da Convenção Batista Brasileira, que ironiza a espiritualidade dos rituais pentecostais. Outro autor batista, por sinal muito lido no Brasil, H. E. Alexander, diz que o movimento pentecostal nada mais é do que um dos ramos do espiritismo, do feiticismo ou da macumba. E Francisco Huling, também batista, ex-pentecostal, afirma em seu "É Bíblico o Pentecostalismo?" que "o contraste completo entre o que via e o que as Escrituras diziam ajudaram-me a pensar, e eu comecei a ver que o pentecostalismo não é de Deus, mas, sim, do Diabo".
Embora mais comedidos nos últimos tempos quanto à Igreja Católica, os pentecostais não a perdoam, mas a carga mais pesada de seus ataques é contra os protestantes tradicionais. A Convenção Geral das Assembléias de Deus, de 1963, declarou a propósito:
“O ecumenismo, representado pelo Conselho Ecumênico das Igrejas e pelo Concílio Vaticano II, tem uma tendência à apostasia. Uma comunhão de igrejas que abertamente praticam o culto aos ídolos e que crêem na justificação pelas obras (igrejas católi­co-romanas), que negam a divindade de Jesus Cristo ou seu nascimento virginal. a necessidade do novo nascimento. a ressurreição e o retorno de Cristo (Conselho Mundial de Igrejas), é uma coisa impossível para os pentecostais. Os protestantes do Conselho Mundial de Igrejas traíram aqueles que morreram como mártires pela causa da fé."
Ainda sobre a Igreja Católica. um jovem pastor da Assembléia de Deus do Recife observou maliciosamente para o repórter:
"Se mantivermos as altas taxas de crescimento registradas pela nossa Igreja desde o início do movimento pentecostal entre nós. chegará breve o dia em que ninguém mais dirá que o Brasil é o maior país católico do mundo. Aliás. adotando um expediente para a aceitação dessa verdade de forma menos traumática. os católicos têm exagerado nos últimos anos a importância do seu movimento carismático, o qual, na essência, não passa de um arremedo da experiência pentecostal forjada nos Estados Unidos."
A expansão da Assembléia de Deus parece, de fato, inspirada na consecução da expectativa triunfalista aludida pelo jovem pastor do Recife.

DONS E CARISMAS

O otimismo do pastor da Assembléia de Deus é aceitável por razões perfeitamente compreensíveis e que dispensam maior discussão. Todo crente, afinal, considera a sua única verdadeira e triunfante igreja sobre as demais. Mas a realidade é que a Igreja Católica não tem superestimado a sua corrente carismática. Ao contrário, é exageradamente cautelosa em valorizá-Ia. Nada além da exata medida do seu significado em termos de reforço das novas perspectivas que se abrem para o catolicismo. Muito menos procura identificá-Io com o pentecostalismo, sendo também excessivamente rigorosa em chamar a atenção para as diferenças que caracterizam e distinguem os dois movimentos.
A Renovação Carismática Católica (RCC) surgiu em 1967, a partir dos estudos da obra “A Cruz e o Punhal" pelos professores e jovens estudantes católicos da Universidade de Duquesne, pequena cidade nos arredores de Pittsburgh, nos Estados Unidos. Seu precursor foi o Papa João XXIII, que compôs uma oração de louvor ao Espírito Santo como preparação espiritual da Igreja para os trabalhos do Concílio Vaticano II. A palavra definitiva de aprovação do movimento veio, entretanto, em outubro de 1973, em Grottaferrata, perto de Roma, quando os participantes do I Congresso de Líderes da Renovação Carismática, àquela altura reunindo 34 países, ouviram do Papa Paulo VI as seguintes palavras:
"Estamos sumamente interessados no que estais fazendo. Ouvimos falar muito sobre o que acontece entre vós e nos regozijamos. Alegramo-nos convosco, queridos amigos, pela renovação de vida espiritual que hoje em dia se manifesta na Igreja, sob diferentes formas e em diferentes ambientes."
Depois, o Papa João Paulo II, dirigindo-se aos líderes do IV Congresso Internacional da Renovação Carismática que foram recebidos em audiência especial nos jardins do Vaticano, endossou:
"Sinto-me verdadeiramente feliz em ter esta oportunidade para falar-vos de coração aberto, a vós que viestes de todo o mundo para participar desta conferência estabelecida para assistir-vos no cumprimento de vossa tarefa como dirigentes da Renovação Carismática. De modo especial, quero assinalar a necessidade de enriquecer e tomar realidade essa visão eclesial que é tão essencial para a Renovação, nesta etapa de seu desenvolvimento."
Kharisma, em grego, significa graça, dom gratuito. Carismático, portanto, é a pessoa que possui carismas.
No Novo Testamento, o vocábulo é largamente empregado em toda a narrativa para designar os ungidos do Senhor, aqueles que usufruiriam a vida eterna por força do dom da graça de Deus. Em sentido estrito, é um dom atribuído aos Apóstolos, como manifestação da presença do Espírito Santo.     
Nos tempos modernos, chamam-se carismáticos a certos movimentos da renovação espiritual baseados na oração em conjunto, na experiência do "batismo no Espírito Santo" e determinados carismas, especialmente a glossolalia ou dom das línguas. Tais movimentos registraram-se tanto nas igrejas tradicionais como nos grupos religiosos autônomos ou seitas, sendo este o motivo das inúmeras denominações surgidas. Decidiu-se. na Igreja Romana, chamá-Io Renovação Carismática Católica, embora houvesse nos Estados Unidos uma tendência que preferia a expressão "pentecostalismo católico". Mas, não prevaleceu.
A Renovação Carismática Católica não é um movimento autônomo ou uma pastoral. Segundo seus participantes, é um sopro do Espírito Santo que pretende reavivar e fortalecer a Igreja Católica em todos os seus membros e estruturas, santificando-os com seus frutos e animando-os com seus carismas. Caracteriza­-se pela valorização da oração individual e comunitária nas formas mais variadas, buscando uma vida nova, um novo Pentecostes. Sob a ação do Espírito Santo, as pessoas experimentariam libertação, alegria, segurança, cresceriam no amor ao próximo, na vivência comunitária, aprenderiam a discernir a vontade de Deus e permaneceriam em comunicação com a Hierarquia.
A Renovação Carismática realiza uma forma de evangelização e de aprofundamento doutrinal, através da meditação e do estudo pessoal da Sagrada Escritura e outras leituras de orientação católica. Embora não tenha como objetivo principal uma intenção missionária, isto é, de conquistar pessoas não-cristãs ou afastadas da Igreja, os grupos de oração do movimento são abertos a todos. São, portanto, grupos de fronteira. Neles aparecem não-­engajados e mesmo não-praticantes, os quais são possíveis de uma eventual conversão.
A Renovação Carismática Católica abrange hoje cerca de 130 países, inclusive do Leste europeu, como Iugoslávia e Polônia. Chegou ao Brasil em 1972, trazido por padres jesuítas e espalhou-se logo por vários Estados, contando com mais de um milhão de adeptos, homens e mulheres, entre os quais quase mil sacerdotes e vários bispos. Só no VIII Cenáculo, em maio de 1986, conseguiu concentrar 85 mil pessoas no estádio do Pacaembu, em São Paulo.
A direção mundial da RCC é o "International Catholic Cha­rismatic Renewal Office (ICCRO), que funciona em Roma. À nível de América Latina, existe um escritório em Bogotá, Colômbia, e no Brasil uma Comissão Nacional de 15 membros, em Brasília, coordena as equipes regionais. Designados pela CNBB, dois bispos cuidam do acompanhamento espiritual dos carismáticos brasileiros: Dom David Picão, bispo de Santos, e Dom Victor Tiel­beek, bispo de Formosa (Goiás). Em muitas cidades existem equipes de serviço da Renovação Carismática Católica, cuja incumbência é animar e acompanhar as tarefas dos grupos de oração e promover encontros no âmbito diocesano, geralmente assistidas por um sacerdote designado pelo titular      local.
O movimento carismático católico apresenta-se muito difundido entre nós ultimamente, principalmente pela força do rádio e da televisão. Para tanto, trabalha febrilmente um estúdio de produção de cassetes e vídeo-tapes em Cachoeira Paulista, São Paulo, responsável pela manutenção dos programas levados ao ar. Na mesma cidade, funciona também uma emissora de rádio de propriedade de uma fundação ligada à Renovação Carismática Católica. Em Eindhoven (Holanda) e Dallas (Estados Unidos), centros especializados preparam jovens do Brasil, Colômbia e México para a utilização dos meios de comunicação no trabalho missionário. Na área de imprensa, publica a revista “Jesus Vive e é o Senhor" e o "Boletim Nacional". Algumas cidades, como São Paulo, Belo Horizonte e Brasília, editam ainda seus boletins noticiosos.
O trabalho de envolvimento promovido pela Renovação Carismática Católica é extraordinário, tanto na adesão de novos adeptos, quanto em maturidade e engajamento eclesial. Grupos de oração são organizados em todas as regiões do Brasil, com centenas de milhares de pessoas comprometidas, notadamente sacerdotes e religiosos, através de freqüência a seminários e retiros específicos estabelecidos em vários pontos do País. Por outro lado, o movimento desenvolve um grande esforço para inserir-se no contexto global da Igreja, com a participação, por exemplo, em diversas pastorais, como as da Saúde, Catequese, Universitária e Penal. e em grupos paroquiais que organizam encontros de casais e de jovens.

COMPLICAÇÕES À VISTA

A Renovação Carismática. do ponto de vista teológico. nada modifica ou acrescenta ao catolicismo nos termos em que é conhecida. Reforça, entretanto, a consciência da experiência religiosa da Igreja, revitalizando seus fundamentos doutrinários. De outra parte, incorporando algumas formulações em voga fora da Igreja Romana, não aceita, contudo, o conteúdo teológico usual na cultura do pentecostalismo clássico ou do neo-pentecostalismo protestante, especialmente o fundamentalismo, tanto bíblico como doutrinal. Nesse particular, há que se levar em conta que aqueles movimentos são anteriores à Renovação Católica, o que não significa que esta seja necessariamente um produto de importação protestante.
Não obstante os movimentos carismáticos protestantes tenham aparecido algum tempo antes do católico, a fundamentação dos mesmos não é diferente da tradição do catolicismo, centrada no Novo Testamento e no cotidiano da Igreja primitiva, comum, portanto, a todas as correntes do cristianismo. A Igreja Católica reconhece, pois, como legítima a contribuição que pentecostais clássicos e neo-pentecostais protestantes trouxeram ao movimento carismático, considerando-a autêntica no contexto da doutrina. A Renovação Carismática, ainda, não é o primeiro nem o único movimento revitalizador ocorrido na história da Igreja Romana, ciclicamente sacudida por impulsos de reanimação.
As divergências doutrinárias entre a Renovação Carismática Católica e os diversos grupos pentecostais estão situadas, antes, nos antagonismos existentes entre a Igreja Católica e tais grupos. São discordâncias profundas e envolvem aspectos delicados de questões fundamentais para aqueles credos, sem a mínima possibilidade de superação com a facilidade desejada. Para imaginar o grau de dificuldades, basta dizer que foram irrisórios os progressos registrados até hoje nas conversações iniciadas em 1969 entre o Secretariado para a Unidade dos Cristãos da Igreja Católica, de um lado, e dirigentes de algumas igrejas pentecostais e membros do movimento carismático em igrejas protestantes e anglicanas, de outro. Desde aquele ano, com efeito, já foram feitas, pela ordem, diversas rodadas de conversações em Horgen (Suíça), Roma, Schloss Graheim (Alemanha), Veneza e, novamente, Roma.
todas com resultados pouco animadores.
Logo nas primeiras reuniões, a Igreja Católica, sábia e prudentemente, excluiu do debate qualquer consideração de ordem pastoral conseqüente do seu relacionamento com o movimento carismático católico. Se houvesse, estaria adiada. Quando muito, admitia sua abordagem como contribuição ao esclarecimento das mesmas relações, mas nunca como objeto de deliberação. Era uma tentativa política de permitir o avanço da discussão de outras questões mais transcendentais. Mesmo assim, pouco valeu, porque a sustentação pelos católicos da fé em princípios que professam durante 19 séculos manteve as dissensões com seus interlocutores, igualmente radicalizados na defesa de suas crenças. O “batismo no Espírito Santo", por exemplo, foi longamente discutido, sem qualquer acordo. Enquanto representantes do movimento carismático nas igrejas protestantes históricas mostraram-se substancialmente favoráveis à perspectiva católica, outros ficaram com a visão pentecostal clássica.
Aquele e outros descompassos foram multiplicados na medida do aparecimento do interesse pela explicitação dos dons, tão relevantes para os carismáticos, como o das línguas, no qual elementos divinos e humanos combinam-se misteriosamente em sua manifestação ou exteriorização. No caso, diríamos que os carismáticos de todas as tendências não divergem, entendendo o dom das línguas como uma oração de glorificação a Deus, individual ou coletiva, feita em linguagem desconhecida, nunca estudada e nunca ouvida, através de palavras que não expressam um pensamento formulado pela mente. Orar em línguas não quer dizer que a pessoa fique em transe, sem controle de suas faculdades mentais. Isso não acontece. O crente pode interromper ou iniciar a oração de acordo com sua vontade, apenas empregando uma linguagem desconhecida.
Geralmente são utilizadas línguas mortas, orientais na sua maioria, como o aramaico e o hebraico antigo, sendo que os ocidentais, via de regra, recebem o dom de falar línguas asiáticas e dialetos do Extremo Oriente. A pessoa recebe o dom das línguas durante a oração ou no curso de ocupações habituais, ou mesmo em meio ao sono, portanto, de forma imprevisível. Mas também pode perdê-Io da mesma maneira, como se esquece qualquer idioma aprendido por falta de uso, embora o privilégio tenha sempre caráter permanente.
A propósito, nota-se entre algumas correntes carismáticas, especialmente a Renovação Católica, a tendência para superestimar o dom das línguas e, mesmo, acreditar que o objetivo principal do movimento seja levar as pessoas àquele tipo de experiência. É um exagero, cuja prática se tem procurado corrigir, pois sua prevalência conduziria inevitavelmente a uma certa forma de subestimação de toda a gama de carismas, onde iremos encontrar vários outros dons, como o da interpretação das palavras, da profecia, da cura, do milagre, da fé, do discernimento dos espíritos, da sabedoria e da ciência, os quais, juntamente com o dom das línguas, formam o conjunto de atributos do Espírito Santo a que se refere a Carta de São Paulo aos coríntios.
A fidelidade à doutrina da Igreja Católica e a obediência à hierarquia não são suficientes para assegurar à Renovação Carismática uma imunidade à oposição e às críticas de alguns segmentos do meio católico. O setor que se convencionou chamar de progressista aponta-a como co-responsável pela atmosfera de obstáculos que se levantam às conquistas sociais do povo de Deus. Os teólogos da Libertação, particularmente, acham que ela representa um anacronismo, verdadeiro retrocesso na trajetória histórica da Igreja Católica. Chamam-na de alienante.
A Renovação Carismática conta naturalmente com boa cobertura de retaguarda da Igreja conservadora que, como ela, acredita que o certo é a dedicação exclusiva dos misteres espirituais, contra a secularização. Como os pentecostais, os carismáticos católicos consideram a indiferença, ou melhor, a apatia política, perfeitamente compatível com uma postura religiosa correta. O padre Caetano Tillesse, teólogo carismático de Fortaleza, vai mais longe, afirmando que "a Teologia da Libertação é uma opção política pelos pobres como classe e não pelos pobres como tais", e acusa:
"A Teologia da Libertação mostra que se deve libertar de um sistema opressivo para outro sistema também opressivo. Na verdade, quase todos os teólogos da Libertação vêm de Louvaine, na Bélgica, e são de influência marxista."
Não é improvável que, no futuro, apareçam, na Igreja Católica, maiores resistências à Renovação Carismática, exatamente à medida em que esta alargue sua órbita de ação e as idéias progressistas, por outro lado, ganhem mais consistência nos círculos católicos, bem como cresçam os partidários da Teologia da Libertação. Aí, as radicalizações ficarão certamente mais perigosas.

PORTA-VOZ DO PAPA

Existem, naturalmente, outras barreiras ou pólos de contenção aos avanços da corrente progressista dentro da Igreja Católica.
Não era de se admirar, por exemplo, que um dos primeiros decretos do Papa João Paulo II, ao assumir o pontificado, fosse sobre a aprovação dos estatutos de um movimento de centro-­direita, ao qual concedeu a condição de Fraternidade, instituto secular com status quase de ordem religiosa. Quando bispo de Cracóvia, o então cardeal Woityla, juntamente com o falecido cardeal Wysznski, bispo de Varsóvia, ajudou a instalá-Io na Polônia. Não era, pois, de se estranhar que, assentando no trono de São Pedro. João Paulo 11 lhe desse o máximo de prestígio e o transformasse, inclusive, no mais fiel intérprete do pensamento da Santa Sé. Foi o que aconteceu ao “Comunhão e Libertação", virtual porta-voz do Vaticano em assuntos políticos, em cuja comemoração do trigésimo ano de existência, Sua Santidade enfatizou:
"A vossa presença cada vez mais consistente e significativa, na vida da Igreja na Itália e nas várias nações nas quais a vossa experiência começa a difundir-se, é devida a esta certeza de que deveis aprofundar e comunicar, porque é esta certeza que sensibiliza o homem."
No cenário político italiano, é sabido que Comunhão e Libertação fala a mesma linguagem e esposa as mesmas idéias do Partido Democrata Cristão, ao qual tem ajudado no esforço de arrebatar algumas Prefeituras importantes das mãos dos comunistas. É um concorrente das esquerdas no plano social, com grande influência nos meios de comunicação da Itália.
Comunhão e Libertação é oriundo de um movimento estudantil da Ação Católica de Milão. Apareceu a partir do grupo "Gioventú Studentesca" e sempre teve Dom Luigi Giussani como o seu principal inspirador e incentivador. Hoje, está também na Alemanha, Suíça, Espanha, França, Iugoslávia, Luxemburgo, Bélgica, Inglaterra, Irlanda, Polônia, Hungria, Uganda, Quênia, Costa do Marfim, Canadá, Estados Unidos, Peru, Paraguai, Brasil, Chile, Argentina, Líbano, Israel, Japão, Coréia e Nova Ze­lândia.
Dom Luigi Giussani nasceu em Désio, Itália, em 1922, e fez os primeiros estudos em Milão, onde depois foi ordenado sacerdote. Aprofundou-se em Teologia na Faculdade de Venegono. Por volta de 1950, voltou-se para a ativação do movimento destinado a avivar a presença cristã entre os estudantes, embrião do Comunhão e Libertação. Leciona, atualmente, Introdução à Teologia, na Universidade Católica do Sagrado Coração, em Milão, atividade que acumula com a supervisão, a nível mundial, da instituição que fundou. Publicou "Teologia Protestante Americana" e inúmeros ensaios e artigos sobre as motivações racionais da adesão à fé e à Igreja Católica, temas de seus livros "Caminhos da Experiência Cristã" e “Em Busca do Rosto do Homem".
“Aquilo que o movimento não é, nem quer ser, é um co-acervo de iniciativas" - destaca Dom Giussani, sintetizando o Comunhão e Libertação. A fundamentação do valor da experiência do movimento - explica - está numa analogia com relação à vida global da Igreja. Seu sentido profundo é chamar a atenção para a memória de Cristo. E dentro dessa finalidade colocam-se a educação à moralidade e o exercício da cultura na perspectiva da fé. A finalidade precípua - repete - é lembrar em nossas vidas que Cristo está presente. Trata-se, portanto, de um apelo a renovar a memória pessoal de Cristo, memória de uma pessoa conhecida e amada, pessoa hoje presente em tudo aquilo que ela é, e que ela fez pelo mundo inteiro e por cada um de nós em particular. Assim, cada qual, através da lembrança desta presença ativa e marcante, tem a possibilidade de viver o movimento que o convida a renovar a memória como uma maravilhosa valorização de tudo aquilo que lhe aconteceu na vida e de tudo aquilo que 'aconteceu no transcorrer da história da humanidade. É a possibilidade de tocar e testar, de relembrar e fazer reviver tudo aquilo que aconteceu, descobrindo a olho nu, nesta história, o plano misericordioso que vale mais do que a vida.
Comunhão e Libertação chegou ao Brasil sustentado financeiramente pela direção italiana do movimento e experimenta boa penetração a nível nacional, atuando de forma intensiva em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná, Amazonas e Pará. Com o nome" Cultura e Fé" , mantém centros em São Paulo, Belo Horizonte e Manaus, destinados a atividades culturais de jovens e adultos, com prom'Oção de conferências, debates, simpósios, cursos, publicações de revistas, boletins, livros, organização de férias, passeios, espetáculos, eventos e exposições de arte.
O movimento vem organizando, a partir de 1970, as Comunidades Universitárias de Base (CUBs), que desenvolvem grande trabalho no plano social, sobretudo a articulação de mutirões para construção de moradias para as populações faveladas das periferias em terrenos devidamente legalizados, em São Paulo e Belo Horizonte. As CUB’s geralmente são formadas de universitários, os quais, tão logo terminam seus cursos, ingressam automaticamente nas Comunidades de Profissionais Cristãos (CPC’s), permanecendo e dando seqüência, assim, ao seu trabalho no movimento. Também existem as Comunidades de Base das Escolas Secundárias (COBES), primeiro estágio da participação do estudante no serviço comunitário.
O ponto de vista do Vaticano sobre os temas mais polêmicos da atualidade pode ser conhecido com a leitura regular de "30 Giorni" (30 Dias), publicação bimensal em várias línguas, editada na Itália, com o apoio do Comunhão e Libertação. A revista já circula no Brasil, traduzida em português, e, em 1987, passará a ser inteiramente produzida em São Paulo.
Órgão de centro-direita, "30 Giorni" adota uma linha editorial rigorosamente conservadora, já tendo publicado reportagens e artigos de opinião em que deixa claro seu antagonismo à Igreja progressista e à Teologia da Libertação. Combate, igualmente, o fundamentalismo protestante e islâmico, os maçons, o Conselho Mundial de Igrejas, o congregacionalismo religioso americano e as seitas, de modo geral. O diálogo ecumênico é, da mesma forma, tratado com enormes restrições.

IV
O ORIGINAL E O BIZARRO

Quem corta o bairro do Caxingui pela avenida Professor Francisco Morato, logo depois do Morumbi, a fim de alcançar a rodovia Régis Bittencourt, em São Paulo, tem a atenção forçosamente voltada para um grandioso conjunto arquitetônico que fica à direita. dominado, no primeiro plano, por um templo imponente e de linhas suaves. É uma edificação, segundo projeto americano, apta a suportar abalos sísmicos de até 8 pontos na escala Richter. Atrás, erguem-se vários blocos amplos, prédios destinados a serviços administrativos, centro de treinamento de missionários, unidade de computação e uma igreja de menor porte (capela). Uma imensa área construída numa das zonas supervalo­rizadas da Capital paulista. São os domínios dos mórmons, ou melhor, da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, nome oficial da seita.
Os mórmons são, hoje, cerca de 7 milhões no mundo, estabelecidos em 96 países e 18 colônias, praticamente dobrando o seu número a cada 15 anos. No Brasil, já passam de 300 mil os registros de fiéis batizados e que freqüentam as 287 casas de oração (capelas) existentes. A propósito, os mórmons fazem distinção entre templos e capelas: os primeiros são considerados locais san­tificados, morada de Deus, não abertos ao público, destinados apenas às ordenanças sagradas, como o selamento para a eternidade (casamento) e o batismo vicário, enquanto as outras são casas de oração no sentido convencional, como as igrejas católicas ou protestantes, onde se permitem reuniões e atividades culturais e filantrópicas do interesse da comunidade. Só existem 46 templos, dos quais 11 nos Estados Unidos, ao passo que são milhares as capelas mórmons em funcionamento em todo o mundo.
A primeira Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias surgiu a 6 de abril de 1830, em Fayette, Seneca, Estado de Nova Iorque, Estados Unidos, organizada por Joseph Smith, fIlho de família de lavradores humildes, nascido em 23 de dezembro de 1805, em Sharon, Vermont. Contou Smith que, aos 15 anos, confuso como todos os adolescentes a respeito das religiões, orava em um bosque perto da fazenda onde morava, em Palmyra, no Estado de Nova Iorque, quando teve a visão de dois personagens celestiais. Eram Deus, o Pai, e Seu Filho, Jesus Cristo. Entre outras advertências, disseram-lhe que não se juntasse a nenhuma das igrejas existentes, porque mais tarde, caso se provasse digno, ser-lhe-ia confiada a missão de fundar a igreja original de Jesus Cristo.
Três anos depois, ainda segundo o relato de Joseph Smith, apareceu-lhe um anjo que se identificou por Morôni e que o levou a uma montanha próxima a Palmyra, mostrando-lhe um registro sagrado, gravado em placas de ouro, que continha a história secular e religiosa de uma antiga civilização americana. Só quatro anos após, entretanto, o mesmo Morôni retornou e permitiu-lhe retirar aquelas placas do esconderijo e traduzi-Ias para o inglês, com o auxílio de duas pedras cabalísticas - U rim e Tumim – por ele fornecidas, dando origem ao Livro de Mórmon, nome de um profeta e general que viveu no quarto século d.C., pai de Morôni, que foi o último profeta a possuir as antigas e sagradas escrituras e as escondeu no Monte Cumorah antes de passá-Ias às mãos de Smith.
Traduzidas, as placas de ouro foram devolvidas ao anjo Mo­rôni, que as teria levado para o Reino dos Céus. A obra narra a história de várias civilizações que viveram na América antiga, entre 2.200 A.C. e 420 D.C., contendo, inclusive, um relato sobre a misteriosa presença de Jesus Cristo no continente americano, onde pregava o Evangelho após sua ressurreição. O Livro de Mórmon tem, para a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, autoridade superior à da própria Bíblia, porque esta é questionada e corrigi da em vários pontos à luz do mesmo Livro de Mórmon.
"Eliminam-se o Livro de Mórmon e as revelações, e onde estará a nossa religião? Não teremos nenhuma." - ensinou Joseph Smith.
A divulgação das fantásticas visões e das manifestações celestiais do profeta desencadearam tenaz perseguição aos mórmons e à sua igreja em Nova Iorque, forçando-os a se mudarem para Kir­dand, no Ohio, e depois para o Missouri e Illinois. Em Nauvoo ergueram a maior e mais próspera comunidade daquele Estado e Joseph Smith, prefeito da cidade, com grande fama e popularidade, chegou a candidatar-se e iniciar campanha de âmbito nacional à Presidência da nação. Foi o máximo, em matéria de provocação. Logo foi acusado de diversos crimes. Acabou trancafiado na cadeia de Carthage, Illinois, de onde foi arrancado pela turba enfurecida e linchado em praça pública, juntamente com seu irmão Hyrum, a 27 de junho de 1844.
Morto Smith, Brigham Young assumiu, então, a liderança da seita, conduzindo seus adeptos de Nauvoo até o vale do Grande Lago Salgado. Um ano e meio de viagem por planícies desérticas para vencer as 1.400 milhas que os separavam da nova terra prometida, numa jornada que terminou a 24 de julho de 1847 para o primeiro comboio de colonos mórmons. Trabalharam duramente para construir uma cidade a mais de mil milhas de distância do povoado mais próximo a Leste e a 750 milhas do Oceano Pacífico. Quatro anos após sua chegada ao vale do Lago Salgado, os mórmons já fundavam vilas e cidades onde agora estão os Estados da Califórnia, Idaho, Wyoming, Arizona e Novo México, num total de 600 comunidades, do Canadá ao México.
Atualmente, conquanto representem considerável segmento da população. em to.das as cidades dos Estados Unidos, recente pesquisa demonstrou que 70 por cento dos habitantes do Estado. de Utah são nominalmente mórmons e igual percentagem é registrada como de membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias em Salt Lake City, que tem para a seita a mesma significação do Vaticano para os católicos. Salt Lake City é a cidade santa dos mórmons.
A seita é governada por um conselho de três membros, a Primeira Presidência, cujo presidente é chamado Profeta e suas decisões seriam inspiradas por Deus. Abaixo, estão o Conselho dos Doze Apóstolos e o Patriarca.
Nem a Igreja Católica, nem as igrejas protestantes históricas, consideram os mórmons como cristãos. Segundo a doutrina da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, o grande conselho que dirige o universo compreende três personagens:
Deus, o Pai Eterno; Seu Filho, Jesus Cristo; e o Espírito Santo.
Os mórmons acreditam que esses três são entes separados, individualmente distintos uns dos outros, mas unidos em propósito. O Pai e o Filho têm físicos materialmente bem parecidos com os nossos, enquanto o Espírito Santo é uma entidade de Espírito. Cada um dos membros da Trindade é chamado Deus e, juntos, constituem a Divindade. Deus, o Pai, é um homem de carne e osso glorificado e vive, fisicamente, próximo à estrela "Kolob", com suas várias esposas.
Os mórmons crêem na Bíblia, como palavra de Deus escrita pelos homens, mas repleta de erros que são corrigidos e complementada pelo Livro de Mórmon. Acreditam, também, como palavra de Deus, em dois outros livros de escrituras: "Doutrina e Convênios", compilação das revelações para a Igreja e para alguns de seus membros nos primórdios da restauração, e "A Pérola de Grande Valor", seleção de revelações e traduções de Joseph Smith, mais uma curta história do profeta mórmon.
Aspecto doutrinário que abre um fosso de intransponível separação entre mórmons e católicos é a afirmação da seita de que não houve interveniência sagrada do Espírito Santo no processo da concepção de Jesus Cristo. Segundo os mórmons, Maria teve relações sexuais com Deus, o qual acreditam, como foi dito, ter configuração, isto é, ser de carne e osso. Dessa forma, a Virgem Maria não seria, de fato, uma virgem, e José, seu marido, foi, na verdade, seu segundo esposo, porque o primeiro foi Deus. Esses princípios são sustentados desde Joseph Smith, passando por seu sucessor Brigham Young e figuras de primeira linha da seita, como os apóstolos Orson Pratt, Joseph Fielding Smith e Heber Kimball, até chegar ao apóstolo Bruce McConkie, principal doutrinador do mormonismo atual, estando contidos no seu livro "Mormon Doctrine".

PRAGMATISMO RELIGIOSO

A narrativa da evolução do mormonismo no Brasil retrocede a 1923, quando Roberto Lippelt, com mulher e três filhos, emigraram de Hamburgo, na Alemanha, para o Brasil, indo fixar-se em Ipoméia, em Santa Catarina, local onde se concentrava um núcleo importante de famílias alemãs. Augusta, a esposa, logo começou a se corresponder com a sede mundial dos mórmons, em Salt Lake City, pedindo literatura para aprofundar seu relacionamento com a seita, que já conhecia no seu país de origem. Foram efetuados diversos contatos e, em 1926, o presidente da missão sul-americana da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Rheinold Stooff, concordou em sair de Buenos Aires para visitar Ipoméia.
Entusiasmado com o que viu ali, um clima de ampla abertura às novas religiões, Stooff estabeleceu uma missão em Joinville, sob o comando de Jack Cannon e David Barchted, para, a partir do eixo Ipoméia-Joinville, fazer proselitismo nas terras catari­nenses. Em 1935, a sede da missão mudou-se para a cidade de São Paulo e o mormonismo passou a experimentar crescimento progressivo, até assumir a expressão que tem hoje no País.
O trabalho de aliciamento para as fileiras do mormonismo no Brasil, contudo, encontrou à frente, até há bem pouco tempo, a barreira do preconceito racial em relação aos negros, aos quais era vedado, por mais de 100 anos, o acesso ao sacerdócio. A proibição estava incorporada à doutrina da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias:
"Os negros não são iguais às outras raças no que diz respeito às bênçãos espirituais, especialmente o sacerdócio e as bênçãos do templo que procedem disso, mas esta desigualdade não é da origem do homem. É ação do Senhor baseado em Suas eternas leis de justiça, e procede da falta de valor espiritual dos negros, enquanto se achavam no estado original."
Entretanto, a 9 de junho de 1978, o então profeta e presidente da seita, Spencer Kimball, para surpresa geral, proclamou em Salt Lake City que "o sacerdócio mórmon está aberto a todos os membros masculinos dignos sem fazer caso da cor da pele ou descendência racial". Não era uma revelação divina, tão ao gosto mórmon, e, sim, uma solução de natureza política feita sob medida para o caso do Brasil. É que negros e mestiços, expressiva parcela da população nacional que não é caracterizadamente branca, haviam dado grande contribuição, inclusive com o pagamento de dízimo, à construção do grande templo de São Paulo, cuja inauguração deveria acontecer dois meses depois da proclamação, em agosto do mesmo ano, e aguardavam com enorme ansiedade o fim da discriminação. Era mantida, todavia, a restrição aos casamentos inter-raciais, conforme o apóstolo LeGrand Ri­chards lembrou na ocasião:
"Temos sempre recomendado que as pessoas vivam dentro de sua própria raça - que os japoneses devem se casar com japoneses, os chineses com chineses, os havaianos com os havaianos, e os pretos devem se casar com pretos."        
As sólidas raízes da poligamia na tradição mórmon, é outro motivo de relutância para os brasileiros no momento de uma eventual opção pela seita fundada por Joseph Smith, por sinal, também polígamo. Nos dias atuais, embora formalmente abolida pela legislação americana, a prática dos casamentos plurais do passado nunca deixou de ser chocante para a cultura cristã ocidental, não podendo ser esquecidas facilmente, portanto, as insólitas palavras com que o profeta Brigham Young pretendeu justificá-Ia:
"Jesus Cristo foi polígamo: Maria e Marta, as irmãs de Lázaro, eram suas esposas pluralistas, e Maria Madalena era outra. A festa nupcial de Caná da Galiléia, onde Jesus transformou a água em vinho, foi por ocasião de um de seus próprios casamentos."
Brigham Young, aliás, tinha 25 esposas. Seus 56 filhos viviam na mais perfeita harmonia e devotavam grande amor ao pai, chamando também respeitosamente de "titias" as mulheres que não
eram suas mães e privavam do mesmo teto e da mesma cama do profeta.
Desde a permissão para que pessoas de raças não-brancas sejam ordenadas sacerdotes, se bem que nenhum negro jamais ascendeu ao ministério mórmon, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias encetou um planejamento de envergadura para aumentar rapidamente os 300 mil adeptos e as 287 casas de oração existentes no Brasil. O plano compreende metas ousadas de ação proselitista de curto e longo prazo. Para acompanhá-Io, foi inaugurado, em 1986, na sede administrativa de São Paulo, um centro para utilização dos avanços da informática nos serviços religiosos. A sofisticada aparelhagem permite um controle perfeito de todas as atividades dos militantes mórmons do País, com um fluxo contínuo de informações com os escritórios do Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, Curitiba e Bauru, todos interligados por teleprocessamento. Os micros também são usados na conciliação bancária da Igreja, gerindo todo o sistema contábil e o monitoramento da circulação da revista "Lahona", com 50 mil exemplares de tiragem.
O centro de computação instalado em São Paulo é diretamente conectado com Salt Lake City, onde os mórmons possuem a maior biblioteca genealógica do mundo, toda microfilmada, reunindo mais de 500 milhões de páginas de registros de nascimento, casamento, óbito e outras informações estatísticas consideradas importantes pela seita. Os arquivos estão protegidos num depósito subterrâneo escavado em rocha sólida de granito, à prova até de uma hecatombe nuclear.
Cerca de mil missionários americanos, ajudados por dois mil brasileiros, por outro lado, passaram a ativar em tempo integral o aliciamento para a seita no Brasil, desenvolvendo programa idêntico ao que fazem 30 mil outros pregadores no mundo e que encontra o forte dessa ação na doutrinação de casa em casa. O plano inclui ainda a abertura de seminários e institutos da religião, como os 700 em funcionamento nos Estados Unidos e Canadá, bem como de escolas e faculdades semelhantes às da Nova Zelândia, Tonga, Samoa Ocidental, Taiti, Chile, Bolívia, Paraguai, Peru, México, Indonésia e Ilhas Gilbert.
Os mórmons também estão transferindo para o Brasil a aplicação das diretrizes responsáveis pelo sucesso econômico da seita nos Estados Unidos, produto de uma concepção pragmática em relação aos bens materiais consagrada pelo próprio Livro de Mórmon (Alma 1,31; 4 Néfi 23). Não é, pois, a simples transposição de conceitos referentes à economia comunitária, como, por exemplo, a operação da rede de lojas "Deseret", nas quais uma mentalidade de cooperativismo capitalista regula as transações. Mas, sobretudo, uma política voltada para negócios que lhe propiciaram acumular um patrimônio superior a 20 bilhões de dólares e fazer investimentos rendosos e de grande porte na economia americana, como os realizados na ATT, IBM e General Electric.
Toda a orientação espiritual e política dos mórmons vem dos Estados Unidos. Afora os mil missionários americanos que aqui trabalham em tempo integral, supervisionando a ação de proselitismo, também de lá vêm 83 por cento dos recursos financeiros consumidos pela seita no Brasil. A arrecadação do dízimo e alguns negócios geram somente 17 por cento da receita. Estes são dados oficiais, fornecidos pelo escritório administrativo da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias em São Paulo. O montante do dinheiro, contudo, não foi revelado, nem o repórter
teve condições de apurar.
Os mórmons, doutrinariamente, são submissos a todos os reis, presidentes, governadores e magistrados. Radicalmente anticomunista, a seita não tem sabido, porém, manter-se à distância dos órgãos do governo americano interessados em conter o esquerdismo na América Latina, permitindo a sua infIltração pelos serviços de inteligência dos Estados Unidos, especialmente a CIA, que tem recrutado, inclusive, grande número de seus líderes para suas fileiras. O quadro é o mesmo em relação aos missionários americanos que trabalham no estrangeiro, não sendo diferente quanto aos nacionais que fazem proselitismo mormonista em países cujos governos se preocupam em combater o comunismo. Um arranjo de múltiplas conveniências.

OS INOCENTES ÚTEIS

A indiferença ou mesmo aversão à atividade política de algumas seitas em processo de expansão no Terceiro Mundo nunca escapou à atenção dos formuladores da política externa dos Estados Unidos, principalmente se o seu universo de adeptos abranger os estratos mais pobres da população. Desse modo, ao estudo de certos grupos religiosos, como as Testemunhas de Jeová, nas últimas décadas na América Latina, incluindo o Brasil, faltaria correção e fidelidade se subestimasse aquela variante. O caminho histórico percorrido pelas Testemunhas de Jeová, com efeito, é pontilhado de acontecimentos políticos explorados de acordo com os interesses da política americana da época, tanto no plano interno, no passado, quanto no cenário continental, na atualidade.
Testemunhas de Jeová é um movimento religioso iniciado em 1872, em Pittsburg, Pensilvânia, nos Estados Unidos, por Charles Taze Russell, antigo presbiteriano e adventista. Seu primeiro objetivo era promover estudos bíblicos, organizados sob o nome de União Internacional dos Verdadeiros Inquiridores da Bíblia, posteriormente mudado para Sociedade de Tratados da Torre de Vigia do Sião e Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, até ganhar, em 1931, a denominação definitiva atual. Russell dedicou-se especialmente à interpretação dos livros de Daniel e do Apocalipse, buscando dados sobre o fim do mundo, que acreditava iminente e previu, sucessivamente, para 1874, 1914 e 1925.
Em 1909, a seita, já atuando em âmbito internacional, mudou sua sede para o Brooklyn, Nova Iorque, começando a editar jornais, revistas e livros com elevada tiragem, fartamente distribuídos na América do Norte e Europa. Por essa época, foi também estruturado o programa de visitas para levar o testemunho de casa em casa e a exibição de audiovisuais produzidos para o trabalho de conversão, assistidos por milhares de pessoas.
Morto em 1912, Russell teve seu lugar ocupado por Joseph F. Rutherford, que introduziu várias mudanças na seita, para torná­-Ia mais dinâmica na conquista de fiéis. Usaram, então, intensamente o rádio, nas décadas de 20 e 30, para a transmissão de conferências bíblicas, chegando a utilizar 403 emissoras em rede por volta de 1933, sendo igualmente ampliados o esquema de visitas de casa em casa e de círculos de estudos bíblicos domiciliares.
Rutherford faleceu em 1942 e foi sucedido na presidência da seita por Nathan Homer Knorr, cuja gestão marcou-se pela execução de planejamento para o setor de instrução. Em 1943, foi fundado um instituto de preparação especial de missionários, a Escola Bíblica da Torre de Vigia de Gilead, em South Lansing, Estado de Nova Iorque, de onde saem graduados os pregadores que são enviados a 166 países do mundo. Outra conseqüência dessa política foi o surgimento de novas congregações em nações onde não havia nenhuma. Era a meta de estabelecer filiais e congêneres em escala internacional. Foi Knorr quem, antes de morrer, em 1977, deu nova estrutura organizacional às Testemunhas de Jeová, com as responsabilidades administrativas divididas entre diversas comissões que compõem o Corpo Governante sediado no Brooklyn e, de lá, dirige a seita no mundo.
A prioridade que as Testemunhas de Jeová deram à produção de material impresso para o proselitismo levou a seita a construir um colossal complexo gráfico anexo, operado por cerca de 2.400 trabalhadores, e outro conjunto acoplado a uma fazenda perto de Wallkill, Estado de Nova Iorque, no qual trabalham mais de 600 pessoas. Essas unidades, subordinadas a "Watchtower Bible and Tract Society of New York lnc.", são responsáveis pelos milhões e milhões de jornais, revistas, livros e panfletos com que são bombardeados permanentemente os lares americanos. A nível mundial, a revista quinzenal "Sentinela", editada em 103 idiomas, tem uma tiragem de 12 milhões de exemplares, enquanto "Despertai", também quinzenal, circula em 53 línguas, com quase 11 milhões de exemplares. As edições em português e espanhol são rodadas em São Paulo, no grande parque gráfico montado no quilômetro 43 da rodovia SP-141, em Cesário Lange, cidade onde a seita tem sua representação brasileira.
Em pouco mais de um século, as Testemunhas de Jeová chegaram a 4 milhões de crentes no mundo, número que cresce rapidamente pela força de doutrinação de mais de 100 mil missionários, a maioria de americanos, todos dedicados ao proselitismo domiciliar em tempo integral. Só no Brasil, eles completaram 30 milhões de horas indo de porta a porta, em 1985. A insistência, aliás, é uma característica dos propagandistas da seita, não lhes importando qual seja a receptividade da sua pregação.
Levantamento feito no final de 1986 mostrou que as Testemunhas de Jeová chegam a perto de 300 mil adeptos no Brasil, organizados em 3.180 congregações. Seus templos, chamados Salões do Reino, são 2.200 no País e, embora a maior concentração esteja em São Paulo, sua presença é registrada em todos os Estados brasileiros.
De acordo com a história da seita, as primeiras Testemunhas de Jeová entre nós foram tripulantes da Marinha Mercante nacional convertidos em Nova lorque, em 1920, e o primeiro representante da então Torre de Vigia, mandado pela direção dos Estados Unidos, aqui chegou em 1922.
A doutrina das Testemunhas de Jeová situa-se bem distanciada dos cristãos. Para elas, o nome de Deus é Jeová e a Bíblia, vista segundo sua exegese, a única fonte da verdade. Assim, negam a existência da Santíssima Trindade, a divindade de Jesus Cristo, a condição pessoa divina do Espírito Santo, a imortalidade da alma, a existência do inferno, a validade dos sacramentos, o valor das orações pelos mortos e a crucificação de Cristo, que teria morrido numa estaca. Acreditam, entre outras coisas, que as igrejas chamadas cristãs, sobretudo a católica, são obra de Satanás, que Maria não é mãe de Deus e teve vários filhos, o inferno é a sepultura comum da humanidade e que constitui violação das leis divinas a assimilação de sangue pela boca ou pelas veias (transfusão).
Interpretando literalmente o Apocalipse, as Testemunhas de Jeová pregam que, ao fim do milênio, iniciado em 1914, haverá o Juízo Final e que somente se salvarão 144 mil eleitos, os quais irão para o "ar superior", onde viverão e reinarão com Cristo. Uma segunda classe de salvos da morte eterna serão deixados em carne e osso, sem, contudo, necessitarem de alimento, vivendo na terra em paz perene, livres das doenças, do medo e da opressão. O restante dos homens, aqueles sabida e voluntariamente maus, serão impiedosamente aniquilados, pois não existe inferno ou purgatório.
As Testemunhas de Jeová consolidaram idéias próprias sobre direitos e deveres civis. Recusam-se sistematicamente a prestar serviço militar, à saudação à bandeira e a outros símbolos nacionais, bem como ao respeito aos feriados e quaisquer manifestações de caráter patriótico, por encará-Ias como idolatria. No Brasil, milhares já foram punidos com a cassação dos direitos políticos, por se negarem a servir às forças armadas alegando razões de consciência.
As Testemunhas de Jeová ostentam uma onerosa tradição de luta na defesa da liberdade religiosa nas diversas partes do mundo. O pacifismo embutido nas convicções da seita tem sido entendido como desobediência civil ou mesmo violação das leis de segurança nacional por vários governos, levando-a a amargar os efeitos de implacáveis procedimentos penais desde a época em que a presidência do grupo religioso foi exercida por Joseph F. Rutherford.
Ao começo da Primeira Guerra Mundial, o próprio Ruther­ford e alguns de seus colaboradores passaram nove meses na cadeia, sob acusação de "atividades anti-americanas". Nos anos 30 e 40, verificaram-se muitas prisões de iniciados. Duras batalhas jurídicas foram travadas em conseqüência, tendo Rutherford, antigo juiz de direito, auxiliado pelo advogado texano Hayden Covington, seu assistente, ganho 46 apelações no Supremo Tribunal dos Estados Unidos, 150 em cortes superiores estaduais, mais diversas ações no Canadá e em outros 22 países. A respeito, escreveu o professor C. S. Braden no seu livro "Estes Também Crêem", publicado em várias línguas: "Prestaram um serviço notável à democracia com sua luta em favor da preservação dos direitos civis, pois fizeram muita coisa para assegurar esses direitos a todo grupo minoritário na América".
A partir de 1960, entretanto, reformulando completamente sua posição em relação à matéria, o governo americano cessou todas as perseguições às Testemunhas de Jeová nos Estados Unidos e começou, no exterior, por via diplomática, a pressionar governos de países do Terceiro Mundo para que adotassem uma atitude de tolerância para com a seita. Além das facilidades no plano interno, como a recomendação à Justiça para que obedecesse as leis que asseguram a liberdade religiosa e a concessão de incentivos fiscais às doações em dinheiro ao grupo religioso, o Departamento de Estado orientou as diversas agências governamentais que operam no estrangeiro no sentido de proteger a seita, cujos missionários passaram, assim, a ter cobertura integral nos países onde prestam serviços.
A reviravolta é explicada pelo correto entendimento do real papel representado pelas Testemunhas de Jeová no contexto da bipolarização internacional contemporânea. Acreditam, agora, os formuladores da política americana que a idiossincrasia pela política incutida pela seita nos seus adeptos como princípio de fé, se não sufoca, pelo menos retarda o surgimento de uma postura que reflita aspirações mais identificadas com as reivindicações comuns às camadas mais pobres da população, justamente o universo por ela atingido. O pacifismo do grupo religioso, em outras palavras, pode constituir-se numa barreira que impeça o seu alinhamento entre as correntes que desejam alterar o establishment. O aIheamento político das Testemunhas de Jeová, enfim, seria poderoso aliado dos Estados Unidos na luta anticomunista nas nações mais pobres do Terceiro Mundo. Por que, então, não prestigiar o importante parceiro?
Por razões diametralmente opostas, a União Soviética recrudesceu, nos últimos tempos, a repressão às Testemunhas de Jeová, em todo o país e nas nações que estão sob seu domínio na Europa Central. Há centenas de pessoas condenadas a trabalhos forçados por se recusarem a prestar serviço militar, votar em eleições, integrar os komsomol e filiar-se ao Partido Comunista, todos pertencentes à seita, clandestina na “Cortina de Ferro". Em setembro de 1986, Yakov Gojan, apontado como líder do grupo religioso na República da Moldávia, foi encarcerado, acusado de vários delitos. Por outro lado, a imprensa russa vem se ocupando freqüentemente do assunto, prevenindo os soviéticos contra a pregação das Testemunhas de Jeová, e o "Komsomolskaya Pravda", órgão oficial da juventude comunista, denunciou a seita por "desviar as pessoas da edificação do comunismo".

DA CORÉIA, COM RANCOR

Aquele sexagenário coreano é, de fato, o tormento das igrejas cristãs.
Na verdade, ninguém acreditava que a seita suportasse o massacre. Aqueles dias de agosto de 1981 foram terríveis. Em todo o país explodiram perseguições às missões do grupo religioso. Dezesseis templos-sede destruídos, documentos incendiados, pastores agredidos, fiéis ameaçados. Um clima de terror por todas as partes. Chamadas, as autoridades não apareceram. Ou melhor, só apareceram para prender centenas de membros e insultá-Ios na
polícia. Nenhuma voz se levantou na imprensa, rádio ou na televisão, para defender os perseguidos. Ao contrário, os meios de comunicação apoiaram o quebra-quebra e justificaram a revolta da, população contra a seita. Dizia-se que a família brasileira estava seriamente ameaçada pelo fanatismo de uma religião exótica. A opinião pública nacional fazia o mesmo juízo da atuação da Associação do Espírito Santo para a Unificação do Cristianismo Mundial - a seita Moon -, não obstante o governador de São Paulo à época, Paulo Salim Maluf, pela lei estadual 2.331, a reconhecesse de utilidade pública, em 16 de abril de 1980.
A violência popular contra as missões do grupo religioso deu lugar às mais desencontradas ilações. Primeiramente, não se tinha notícia, nos tempos modernos, de uma demonstração de intolerância de tamanha envergadura por parte do povo brasileiro. Depois, a feição organizada do movimento evidenciava a existência de uma autoria intelectual concebida fora do País. Nessa linha de raciocínio, a seita, embora sem muita convicção, tentou culpar a KGB, a polícia secreta soviética, mas, logo, ela própria descartou a hipótese, também rechaçada pela Polícia Federal. Antes que outras suposições fossem igualmente afastadas por absoluta falta de consistência, a suspeita recaiu, sobre a CIA – a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos -, à qual já se acostumou a atribuir tudo o que há de mal feito no mundo nos dias atuais. A ação, apoiada por grupos de esquerda, visaria a criar uma comoção social para desestabilizar politicamente a ditadura militar brasileira. Nenhuma prova mais convincente contra a CIA, contudo, foi apresentada, e o assunto, após algumas semanas, caiu no esquecimento, com a seita cuidando de juntar os destroços do que sobrou do quebra-quebra e seguir em frente.
A história da Associação do Espírito Santo para a Unificação do Cristianismo Mundial gira em torno de Sun Myung Moon, nascido a 6 de janeiro de 1920 numa granja do interior da Coréia do Norte. segundo filho de uma família de oito irmãos. Seus pais eram presbiterianos. Aos 16 anos, conforme contou, enquanto orava em uma montanha perto de sua casa, teve uma visão de Jesus Cristo, que lhe confiou a missão de continuar a obra de restauração da humanidade deixada incompleta por Ele, em virtude de Sua morte prematura e injusta.
Em 1938, Moon deixou a Coréia, então sob ocupação militar pelo Japão, para estudar engenharia eletrônica na Universidade de Waseda, em Tókio. Mantinha boas relações com os japoneses, tanto assim que, de acordo com o historiador J. Isamu Yamamoto. alguns militares e industriais nipônicos, todos considerados criminosos de guerra pelos americanos, continuaram seus aliados e protetores nos negócios.
Por volta de 1946, terminada a Segunda Guerra Mundial, Moon reapareceu em Pyongyang, capital da Coréia do Norte, ocupada por tropas soviéticas. Ali, começou a dar vazão a sua vocação de pregador, a princípio numa igreja pentecostal. Depois, internou-se por seis meses numa comunidade religiosa do Paju, ao norte de Seul. estudando a doutrina de Pek Moon Kin, espécie de messias coreano. Casou-se duas vezes, razão pela qual foi excomungado pela Igreja Presbiteriana em 1948.
Em maio de 1948, foi preso e enviado pelas autoridades comunistas da Coréia do Norte para o campo de prisioneiros de Hung Nam, onde ficou por 2 anos e meio, até ser libertado pelas tropas da ONU em 1950. Retornou à Coréia do Sul e, mais tarde, em Seul, fundou oficialmente a Igreja da Unificação, a 10 de maio de 1954. A seita popularizou-se e cresceu extraordinariamente no país e no Japão. Foi nesse período áureo que conheceu o coronel Bo Hi Pak, que servia no quartel-general das forças americanas na Coréia. e a professora Young Oon Kim. doutora em Teologia, pessoas que viriam a ter excepcional importância em sua vida. O primeiro seria o braço direito em todas as atividades políticas patrocinadas pela seita Moon no mundo e a segunda formularia a Teologia da Unificação, principal fundamento do seu grupo religioso, exposta em um livro que ela escreveu.
A mudança do principal centro irradiador da seita Moon para os Estados Unidos, materializada com a compra de uma sede monumental, foi iniciada na década de 60, quando o coronel Bo Hi Pak, recompensado por sua participação no golpe militar de direita que levou ao poder o general Pak Chung Hi, em 1961, foi nomeado assistente do adido militar da Coréia do Sul em Washington. Estava à frente de todas as iniciativas de natureza cultural, como a criação da fundação de defesa da liberdade – a KCCE - e da rádio Ásia Livre - a ROFA -, além de promover diversos eventos em que a Igreja da Unificação tinha interesse direto naquele país, a exemplo da apresentação do coral infantil “Os Pequenos Anjos da Coréia", organizado por Moon. Em 1964, o coronel deixou as funções diplomáticas para dedicar-se completamente à seita do amigo.
A Igreja da Unificação é, tipicamente, uma transnacional político-religiosa. Inteiramente distanciada das raízes do movimento milenarista tradicional da Coréia, alinhando-se ao figurino do conservadorismo americano, ocupa posição de vanguarda no combate ao comunismo internacional. Consiste numa nova interpretação da história bíblica, da história das religiões e da história universal. O pensamento da Unificação tenta exprimir a união de todos os sistemas filosóficos, propiciando soluções consistentes às questões que considera deixadas sem resposta pelos pensadores até nossos dias.
O moonismo, a despeito de várias alusões a Jesus Cristo na sua doutrina, não é considerado cristão, pois nega a autoridade das Sagradas Escrituras, o dogma da Santíssima Trindade, do pecado original, a divindade de Cristo, a virgindade de Maria e a validade dos sacramentos, entre outros fundamentos do cristianismo. Para os moonies (lunáticos), como são conhecidos os seguidores da seita nos Estados Unidos, o livro sagrado, de valor superior ao da Bíblia, é "O Princípio Divino", de autoria de Moon, a quem chamam "Nosso Verdadeiro Pai".
Os ensinamentos do mestre coreano guardam, curiosamente, muita analogia com a Doutrina de Segurança Nacional, vedete durante os anos de ditadura no pensamento brasileiro, enfocando, de forma semelhante, a bipolarização comunismo-democracia e a guerra psicológica. Isso explica a presença volumosa de militares reformados, apaixonados por geopolítica, e cientistas políticos da direita brasileira nos seminários que a seita Moon promove para debater a questão da segurança internacional em face da ameaça comunista.

EMPRESA RELIGIOSA

A seita Moon, com cerca de três milhões de crentes em 140 países, concilia com invejável inteligência a implementação da Teologia da Unificação com a gestão paralela de uma empresa de porte incomum. Analistas econômicos atribuem-lhe a condição de uma das 50 maiores multinacionais e calculam que o seu patrimônio de cinco bilhões de dólares e um ativo quase do mesmo nível possa estar gerando uma renda anual aproximada a 500 milhões de dólares. O mérito por essa situação é, sem dúvida, do extraordinário talento mercantil do reverendo Moon, que administra suas empresas com admirável eficiência técnica, ora através de elementos de confiança, ora através de fundações, como a “Unification Church International", sediada nos Estados Unidos.
Moon começou nos negócios em 1959, com a compra da fábrica de fuzis "Yehowa Shotgun", financiado por amigos japoneses, e cresceu rápido, graças ao baixo custo da mão-de-obra, na maioria de seus seguidores. Logo, entrou no ramo exportação de armas e de automóveis de fabricação coreana para o Japão. Ao mesmo tempo, passou a controlar toda a produção e comercialização de ginseng do Oriente e a industrialização de ervas farmacêuticas da Coréia. Ganhou rios de dinheiro. Nos Estados Unidos, Moon caracteriza suas atividades pela enorme diversificação de negócios, com presença nos mais diversos setores e participação acionária em grandes complexos industriais americanos. Os jornais "Washington Times" e "World Daily Press", mais o matutino "Notícias do Mundo", editado em espanhol, lideram uma cadeia de 19 outros veículos de comunicação da engrenagem moonista na América, Ásia e África, alguns operando em vermelho, como é o caso do "Washington Times", que acumula prejuízos de 150 milhões de dólares, mas continua a circular regularmente, amparado financeiramente pela seita. A produtora de filmes do grupo, a "One Way Productions", já fez vários longas­-metragens para o mercado cinematográfico americano.
O sucesso da seita Moon na América não foi sempre tranqüilo. Em 1984, embora já reconhecida há muito tempo como organização religiosa pela Corte Suprema dos Estados Unidos, intensificaram-se as pressões de setores protestantes fundamentalistas contra a Igreja da Unificação, urdindo-se, então, contra o seu chefe, uma trama em que tomaram parte ativa elementos ocupantes de posições de relevo no Ministério da Justiça, Departamento de Imigração e FBI. Moon foi processado por sonegação fiscal de 7 mil e 300 dólares, provenientes de operação financeira para o custeio, em 1972, de uma cruzada por 40 estados americanos, denominada "Day of Hope", inteiramente financiada pela igreja do Japão com doação de 1,7 milhão de dólares, os quais teriam rendido 25 mil dólares enquanto depositados no Chase Ma­nhattan Bank. Naturalmente, uma importância irrisória para um grupo religioso que recolhia milhões de dólares anualmente aos cofres do Tesouro americano. Mas nada disso foi considerado, uma vez que o que se pretendia, realmente, era agarrar Moon, a fim de solucionar um problema de opinião pública, e o objetivo foi alcançado. O reverendo foi condenado a 18 meses de reclusão, sentença que cumpriu quase integralmente na prisão federal de Danbury, em Connecticut. Todavia, a cadeia só aumentou-lhe o prestígio.
Fora dos Estados Unidos, no Uruguai, por exemplo, a seita Moon é proprietária do Banco de Crédito, do Hotel Victoria Plaza e do diário "Últimas Notícias", de Montevidéu. Aliás, era plano do mestre coreano, até bem pouco tempo, converter aquele país sul-americano na "primeira república unificacionista".
A seita faz, também, investimentos no Brasil, onde possui uma empresa pesqueira, com 78 barcos, em Belém do Pará, exportadora de camarões e lagostas em larga escala. É dona, ainda, de uma construtora, gráficas, fábricas de confecção, lojas de importação, agência de viagem e 14 padarias na cidade de São Paulo, além de vários outros pequenos empreendimentos.
Talvez prevendo os obstáculos que enfrentaria no futuro, a Igreja da Unificação aqui chegou muito cautelosa. A visita do reverendo Moon ao Brasil, em 1965, não significou, absolutamente, o início de atividade muito ostensiva. O missionário japonês Tatsuhiro Sassaki, deixado no Rio de Janeiro pelo mestre coreano, tinha como atribuição apenas o reconhecimento do terreno e a doutrinação em circuito fechado. Quem deu mesmo grande impulso à seita no País foi o reverendo coreano Hyung Tae Kim, que inaugurou, de 1975 até o quebra-quebra de agosto de 1981, vários templos no Estado de São Paulo e um em Passos, Minas Gerais. Sua gestão foi repleta de novas iniciativas, como a tradução para o português do livro "O Princípio Divino", de autoria do reverendo Moon, fundação das revistas "Mundo Unificado" e "Família Mundial", realização de diversos seminários internacionais, preparação de missionários para o proselitismo nas cidades do interior, incremento ao programa de viagem de noivos para serem casados pelo reverendo Moon nos Estados Unidos, excursões culturais de líderes comunitários à Coréia e aquisição da chácara para a instalação do antigo seminário central em São Bernardo do Campo.
Depois do quebra-quebra de 1981, a Igreja da Unificação arrefeceu bastante seu ímpeto expansionista no Brasil, mas retomou-o aos poucos, já contando com 165 missões em diversas cidades, 3.500 militantes (missionários e assemelhados) em tempo integral e. segundo estimam, mais de 50 mil adeptos. Comprou, por 18 milhões de cruzados, em 1986, um enorme prédio de seis pavimentos na rua Cardeal Arcoverde, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, transformando-o em templo e sede administrativa central. Para o moderno edifício adquirido à rua Pires da Mota, na Aclimação, também na Capital paulista, fez a mudança da Faculdade de Teologia. O curso é de três anos, sendo os dois primeiros teóricos e o último de prática missionária, com pós-graduação em Barrytown, nos Estados Unidos. Estavam matriculados 132 alunos em 1986.
A seita Moon mantém um organismo especial para cuidar dos problemas da juventude, chamado Colegiado Acadêmico para a Reflexão de Princípios (CARP), que atua a nível internacional, promovendo conferências e debates universitários, competições esportivas, certames culturais e, sobretudo, intensa doutrinação anticomunista. O CARP faz o intercâmbio entre jovens dos diversos países filiados à entidade, edita a revista política "CARP Magazine" e financia a impressão do jornal "Tribuna Universitária", do qual um dos articulistas permanentes é o senador Jarbas Passarinho.

O PAVOR COMUNISTA

A Igreja da Unificação é um império econômico a serviço da causa anticomunista. “Causa", aliás, é, originalmente, a sigla de uma instituição de nome extenso - Confederação de Associações para a Unidade das Sociedades Americanas, antiga Federação Internacional para a Vitória Sobre o Comunismo -, fundada pelo reverendo Moon. A CAUSA-Internacional, braço político da seita, estruturada em 1980, tem sede na Quinta Avenida, em Nova Iorque, e sucursais em 50 estados americanos. No âmbito internacional, está instalada em 21 países.
A história da CAUSA é inseparável da vida e da experiência vivida pelo reverendo Moon, cujo passado e tradição no combate ao marxismo valeu-Ihe até um título que ostenta com muito orgulho: "O Campeão do Anti-Sovietismo", segundo o jornal russo “Izvestia", de 28 de janeiro de 1984. Ele preconiza na sua cosmovisão centrada em Deus, o " Deusismo" moonista, a única solução capaz de derrotar o comunismo. De um lado, a doutrina faz a exegese da ideologia marxista, apontando-lhe as mentiras e fraudes que conteria. De outro, apresenta uma contraproposta moderna de desenvolvimento intelectual e espiritual de transformação do indivíduo. baseada na concepção que a seita faz de Deus. O "deusismo", todavia, é uma faca de dois gumes. Se um corta o mal do comunismo, o outro se volta contra a corrupção do Ocidente, restaurando a filosofia cristã dessa parte do mundo. Entra aí um tempero de anti-semitismo, pois o moonismo culpa os judeus pela selvageria dos excessos do capitalismo.
O presidente da CAUSA-Internacional é o mesmo coronel Bo Hi Pak, amigo fraterno de Moon desde os tempos em que participou do golpe militar na Coréia e promoveu sua transferência para os Estados Unidos. Bo Hi Pak não faz rodeios ao definir os objetivos da organização no seu manual de operações:
"A CAUSA é um movimento educacional trabalhando em escala mundial. Fortemente opomo-nos ao comunismo, ainda que não nos consideremos meramente anticomunistas, simplesmente porque anticomunismo não é suficiente. "Anti" é uma expressão defensiva e passiva. Em qualquer batalha ou guerra, vocês nunca chegarão à vitória apenas na defensiva. Estamos praticando o anticomunismo há 67 anos, desde a revolução bolchevista e estamos continuamente perdendo terreno. Enquanto formos anticomunistas, o melhor que podemos fazer será adiar a derrota. Nunca teremos uma oportunidade para vencer. O que necessitamos é uma solução positiva para o comunismo ou uma estratégia vencedora. O que necessitamos é uma ofensiva ideológica. Nossa guerra contra o comunismo é primeiramente uma guerra de idéias. uma guerra de compromisso. O campo de batalha é a mente humana."
A CAUSA-Internacional é extremamente eficiente na ação proselitista. Capitaliza tudo na luta contra o marxismo. Apesar dos poucos anos de existência. já realizou dezenas de seminários regionais e três maiores, de porte internacional. Destes, um para representantes do México e América Central; outro. para as Antilhas e nações do norte da América do Sul; o terceiro, em Montevidéu, para o bloco do Cone Sul. inclusive o Brasil. Nosso País se fez presente através do comparecimento de vários militares
vinculados à Escola Superior de Guerra durante o período da ditadura e que, agora, encontraram na CAUSA o espaço ideal para exercitar sua geopolítica anticomunista. Outra preocupação da organização é com a chamada Conferência Mundial de Meios de Comunicação, série de simpósios destinados a conscientizar a imprensa para o perigo marxista e que, recentemente, levou cerca de 700 jornalistas, dos quais 34 brasileiros, para "conhecer o mal que os comunistas fizeram à Coréia e para treiná-Ios na resistência à ideologia fundamentada em princípios ateus e na defesa da democracia".
Considerando que o Brasil é um dos principais alvos da escalada do comunismo internacional pela sua posição estratégica no Atlântico Sul, a filial brasileira da CAUSA desenvolveu um planejamento especial para reverter aquela perspectiva. Acreditam seus dirigentes que o nosso povo, sendo apolitizado e de cultura muito diversificada, toma-se presa fácil da ideologização marxista e não tem condições de resistir sem o respaldo de quem tenha a experiência adquirida em um trabalho ordenado de antico­munismo, como a CAUSA. Foi por isso que, em caráter de emergência, financiou 40 candidatos à Assembléia Nacional Constituinte no pleito de 1986, esperançosa de que os eleitos pudessem, de alguma forma, contribuir para que a Carta Magna não fosse redigida ao sabor dos interesses da esquerda, a exemplo da situação narrada no livro" O Assalto ao Parlamento", do tcheco Jan Kozak, distribuído fartamente pela organização durante a campanha eleitoral.
Também a curto prazo, a CAUSA-Brasil articula um esquema de reunião de cerca de quatro mil professores universitários anticomunistas em tomo da Associação Internacional Cultural e cuida da preparação de líderes estudantis para concorrerem às eleições na UNE e UEE de todos os Estados. Por outro lado, até que executasse o projeto de lançamento do jornal "Folha do Brasil" , periódico de 50 mil exemplares de tiragem, inseriu semanalmente como matéria-paga, em “O Estado de S. Paulo", um informativo publicitário intitulado "Nicarágua" , com o objetivo de combater os sandinistas que tomaram o poder naquele país da América Central. Faz, ainda, com o engajamento de igrejas pentecostais, uma campanha sistemática de panfletagem anticomu­nista na periferia das grandes cidades, para contrabalançar a influências das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica naquelas áreas.
Periodicamente, o coronel Bo Hi Pak, assessorado pelo argentino Antonio Rodrigues Carmona, percorre a América Latina a serviço da CAUSA. São freqüentes seus contatos com os presidentes Pinochet, do Chile, e Stroessner, do Paraguai, bem como com os grupos militares que sustentaram as ditaduras governantes da Argentina, Uruguai e Bolívia. Em todos aqueles países, a CAUSA conta com grande número de filiados e opera livremente, enquanto a Igreja da Unificação abre novos templos e conquista mais fiéis para a seita do reverendo Moon.
É interessante notar que o discurso político da CAUSA guarda perfeita sintonia com o das correntes de extrema direita nos Estados Unidos. Os pontos de vista são tão coincidentes e se confundem tanto que, às vezes, se torna impossível distinguir quem é o responsável por conceitos como este:
Nos últimos anos, temos visto a nação americana perdendo constantemente a fé em Deus e o desejo de proteger o mundo livre. O bom samaritano, os Estados Unidos da América, agora está se tornando o levita que viu o homem ferido, citado na Bíblia. A Bíblia diz que 'o levita seguiu para o outro lado', porém, ironi­camente, hoje os Estados Unidos não pode passar para o outro lado, ignorando os vizinhos sofredores para se livrar dos ladrões. Os ladrões estão em volta dos Estados Unidos. O mundo livre tem um único destino. Para que os Estados Unidos sobreviva, o mundo livre tem que sobreviver. Se o mundo cair, os Estados Unidos cairá. Se os Estados Unidos cair, naturalmente o mundo cairá. Unidos, venceremos; divididos, cairemos. Para preservar o mundo livre, os Estados Unidos deve ser como o bom samaritano. Já é tempo de renovar o espírito dos grandes patriotas americanos e o espírito de fundação da nação. (Coronel Bo Hi Pak, em "Notas de Abertura", CAUSA-Manual de Conferência, janeiro de 1985).

V
GEOPOLÍTICA DA FÉ

“A posição geográfica e o tamanho da cidade facilitaram muito a escolha. Nem muito grande, nem pequena, e bem no centro do País. O ideal para trabalhar em paz." Assim Darci Dusilek, 43 anos, simpático pastor batista nascido no Paraná, justificou a localização da sede da sociedade transconfessional dos Estados Unidos, da qual é diretor-executivo no Brasil.
O prédio fica no coração da Savassi, zona nobre do comércio de Belo Horizonte, São 5 pavimentos de escritórios, num edifício moderno e funcional. Locação exclusiva, nada de vizinhos ou condôminos.
A "World Vision International", como outras transconfes­sionais americanas que fincaram raízes no Brasil durante os governos militares, atua no País desde 1961. A princípio, participava de projetos conveniados com outras denominações e entidades evangélicas no amparo a crianças abrigadas em centros infantis, fornecia suprimentos de socorro e apoio financeiro para a impressão de Bíblias e realização de cursos bíblicos. Depois, patrocinou diversos retiros espirituais e três conferências de pastores, duas em Porto Alegre e uma em Valinhos, no Estado de São Paulo, numa ação descontinuada, esparsa, sem programa de trabalho metodizado, que só veio a estruturar-se em agosto de 1975, quando a "Visão Mundial" foi instalada na Capital mineira.

A “World Vison International" tem escritório central em Monrovia, Califórnia, e cerca de 3.500 funcionários ativos em 87 países, subsidiando aproximadamente 3 mil projetos de assistência a quase meio milhão de crianças, mas que envolvem e beneficiam a seus familiares, perto de 4 milhões de pessoas, a nível internacional. Seu fundador e animador entusiasta foi Bob Pierce, pastor batista e orador brilhante, morto em 1978, que arrebatou com suas palavras e converteu à Bíblia milhares de chineses. A organização, formalizada em 1950, tinha como objetivo inicial o amparo aos órfãos, crianças e vítimas do conflito da Coréia. Com o passar do tempo, contudo, transformou-se numa entidade assistencial de caráter mais amplo.
A história da "World Vision" registra páginas de grande arrojo, como o socorro às vítimas da guerra no Camboja e no Laos, em 1970; missões de salvamento e distribuição de provisões às populações atingidas pelo terremoto que sacudiu Manágua, na Nicarágua, em 1973; e a operation seasweep, ou operação varremar, em que as equipes de transconfessional vasculharam durante dias o mar do sul da China à busca de refugiados do conflito do Vietnam, os quais, fugindo em precárias embarcações, não teriam sobrevivido sem essa ajuda, em 1978. As mesmas páginas inscrevem também atos de grande ousadia política, como a realização de um congresso com 117 pastores na Polônia e a construção de 4 mil casas para desabrigados da guerra em Phnon Penh, no Camboja, sob ameaças constantes dos comunistas, que acabaram por fechar os escritórios da organização no país, em 1975.
É objetivo da "World Vision" o atendimento das necessidades totais do ser humano, o que inclui o oferecimento a todos de uma oportunidade válida de aceitação de Jesus Cristo como salvador e senhor. Para tanto, age junto a pessoas e comunidades carentes, buscando contribuir para o desenvolvimento de todo o seu potencial, a fim de que consigam um controle cada vez maior sobre o ambiente e o destino, atuem sobre as causas e conseqüências da pobreza, alcancem certa autonomia econômica e integrem seus esforços para o crescimento mútuo, tendo como fundamento o amor e o serviço cristão. Sua filosofia considera prioritário servir aos mais carentes dentre os carentes, vítimas de desastres naturais e crianças, estas porque são as que mais sofrem por causa da pobreza e suas trágicas conseqüências. Entendendo, ainda, que apoiar a família sem envolver a comunidade é o mesmo que tentar ajudar a uma criança sem incluir seus pais no processo, a “World Vision" considera vital cuidar de todo o ambiente, trabalhar as causas no seu conjunto e promover o desenvolvimento comunitário integral e harmônico.
Assim, o ideal pregado pela "World Vision" é que todos os projetos tratem das necessidades do ser humano no seu conjunto e não apenas em alguns aspectos. Isso abrange as necessidades espirituais e é a razão pela qual as igrejas conveniadas são estimuladas a atuar nos projetos de forma a alcançar as pessoas visadas com toda a força e amplitude da sabedoria bíblica.
A "World Vision" celebra convênios de cooperação para desenvolvimento de projetos com todas as denominações religiosas, exceto a Igreja Católica. A preferência é pelos batistas, seguidos pelos presbiterianos. No Nordeste do Brasil, são freqüentes, ultimamente, trabalhos com os pentecostais.
A rede brasileira da "Visão Mundial" , como é conhecida entre nós, compreende, além da sede de Belo Horizonte, a sub-sede do Recife e mais 13 escritórios regionais de área, cobrindo Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Bahia, Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí, Maranhão, Pará, Goiás e Mato Grosso do Sul.
"Nosso dinheiro vem dos Estados Unidos e entra no País através do Banco Central, sem nenhum tipo de restrição. São doações que recebemos de corporações empresariais e pessoas de boa-vontade que conhecem e aplaudem nosso trabalho" ­explicou o pastor Darci Dusilek.
Até agora, esses recursos constituíram a única fonte de subsistência da transconfessional. Mas o entendimento de que o Brasil, sendo a oitava economia mundial, deveria bancar a cobertura dos projetos, levou a “Visão Mundial", a partir de outubro de 1986, a articular um esquema para angariar contribuições de pessoas físicas e jurídicas no País. Já estavam cadastrados, àquela época, cerca de 150 doadores mensais e uma campanha sistemática ampliaria a captação. Pela primeira vez, portanto, os brasileiros estariam assumindo progressivamente o financiamento dos projetos assistenciais de uma transconfessional, entretanto sob orientação e monitoramento da mesma, também responsável pelo controle do caixa.
A “Visão Mundial" não recebe qualquer ajuda financeira do governo brasileiro, embora possa obtê-Ia, uma vez que o seu reconhecimento como entidade de utilidade pública a credencia a beneficiar-se de subvenção. Dispôs, todavia, de apoio logístico, em 1986, quando recebeu leite para fornecimento a carentes, da Secretaria Especial de Assuntos Comunitários da Presidência da República, em 16 projetos, e assistência técnica ministrada pela Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER-MG), em alguns programas destinados ao campo.

EXPLORANDO A MISÉRIA

Até 1986, a “Visão Mundial" implementava no Brasil cerca de 420 projetos, a maioria voltados para as crianças, as quais, além de assistência médica e nutricional, participavam de atividades que Ihes possibilitavam um desenvolvimento psicomotor adequado. Aos pais, geralmente eram oferecidos cursos profissionalizantes, clubes de recreação e reuniões para noções básicas de saúde, higiene, nutrição e liderança comunitária. Mantinha convênios para sustentar orfanatos, casas-lares e creches, responsáveis por 35 mil crianças. Uma equipe técnica permanente dava consultoria e supervisão a todas as realizações da transcon­fessional.
Os projetos comunitários da "Visão Mundial", todavia, são de natureza variada e estão subordinados às necessidades e condições locais. Dessa forma, tanto podem visar à integração social e econômica de uma comunidade isolada, como o povoado negro de Buriti Queimado, no norte de Minas, quanto prestar ajuda a um grupo de pescadores, como o de Piaçubuçu, em Alagoas, na estruturação econômica da atividade que representa a sua subsistência. Essa diversidade de planejamento vai até a execução de um projeto integrado de ação social, como o concebido para a população da favela do Matadouro, entre Nilópolis e Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, aglomerado que vivia em condições sub-humanas.
Mas, foi familiarizando-se com a problemática brasileira que, a partir de 1980, a “Visão Mundial" concentrou sua atenção no Nordeste, reconhecido como o maior boi são de pobreza do Ocidente, onde 54 por cento da população economicamente ativa ganham até um salário mínimo e 11,3 por cento não percebem qualquer rendimento, enquanto 93 por cento dos trabalhadores da zona rural e 59 por cento da zona urbana não têm vínculo empregatício no mercado formal de trabalho. Outros dados chocantes são o consumo de leite das populações, 4 vezes menor do que o mínimo recomendado pela Organização para a Agricultura e Alimentação (FAO), e a apresentação de sintomas de desnutrição grave em 66 por cento da população infantil. De outra parte, 4 milhões de pessoas são portadoras de esquistossomose e 3 milhões de doença de Chagas, com 17 mil casos anuais de tuberculose e as moléstias diarréicas elevando a 35,9 por cento a taxa de mortalidade infantil.
Pois bem. Naquele quadro de miséria e carência, a "Visão Mundial" jogou tudo, procurando dar provas de sua eficiência. Aumentou e aperfeiçoou, então, consideravelmente, o número de projetos para a região, alguns com requintes de sofisticação. É o caso da comunidade chamada Vietnam, uma das áreas faveladas mais pobres e desumanas do Recife, o maior centro urbano do Nordeste. Ali, a transconfessional desenvolveu um modelar trabalho de recuperação social integrada. Ao todo, são cerca de 2 mil pessoas que participam do projeto, beneficiadas com cursos profissionalizantes, cursos de alfabetização, cuidados médicos, esforços cooperativos e orientação religiosa. As crianças usufruem de assistência psicopedagógica e a comunidade ganhou uma infra-estrutura de serviços essenciais.
A "World Vison International" procura ser uma sociedade religiosa bastante descontraída, de forma a obter a simpatia popular e, especialmente, o apoio da juventude. Foi com essa política que formou, em 1967, o "Continental", coral de 40 vozes que, acompanhado de orquestra, já apresentou a série "Concertos da Esperança" em mais de 50 países de 5 continentes, inclusive o Brasil, tendo gravado 23 discos e participado de dois documentários de cinema. O conjunto, selecionado rigorosamente, além do talento dos componentes, agrega o compromisso de colocar suas aptidões a serviço dos princípios da organização, em benefício dos carentes. Em 1985, visitando todos os estados americanos, conseguiu espetaculares resultados na campanha de levantamento de fundos para aplicação nos projetos assistenciais.
O esporte é outro meio utilizado pela transconfessional para atrair e facilitar seus contatos com os jovens, motivando-os a colaborar com seus planos. São os “Atletas de Cristo", que disputam várias modalidades de competições com o intuito de divulgar as mensagens da Bíblia. No Brasil, tem sido muito difundido esse programa, com boa receptividade entre a mocidade.
Como todas as transconfessionais procedentes dos Estados Unidos, a "Visão Mundial" faz clara pregação anticomunista e procura evitar qualquer relacionamento com grupos que professam ideologias de esquerda. Nesse proselitismo e atitude de resguardo. tenta incutir, talvez até inadvertidamente, estereótipos culturais americanos implícitos no ideário do comportamento fundamentalista em voga nos Estados Unidos. Certos mecanismos de aculturação são mesmo admitidos tranqüilamente pelo setor de relações eclesiásticas. um dos mais atuantes da engrenagem de funcionamento daquela sociedade religiosa.
Embora as evidências demonstrem o contrário, a "Visão Mundial" nega energicamente qualquer promiscuidade com os serviços de informação dos Estados Unidos, particularmente a CIA, e que agregue intenções políticas estranhas às suas finalidades. Todavia, não consegue, por exemplo, dar uma explicação aceitável aos brasileiros que estranham por que uma transconfes­sional americana não dirige seus programas assistenciais ao próprio Estados Unidos, sabido que lá existem 20 milhões de analfabetos e igual número de pessoas em situação de pobreza absoluta, antes de voltar sua atenção para a miséria de outros países do mundo, como o Brasil. Não seria mais patriótico e, no mínimo, mais prático - indagam - socorrer primeiros aqueles americanos?
Postas de lado essas ilações. não deixa, contudo, de provocar espanto o fato de o governo brasileiro não exercer nenhum tipo de fiscalização sobre as atividades não só da “Visão Mundial", mas de todas as transconfessionais que operam livremente no País. A circunstância de as mesmas encaminharem anualmente um relatório ao Ministério da Justiça não significa nada, não satisfaz a ninguém. Representa, simplesmente, o cumprimento de uma formalidade legal, porque, na realidade, o governo não averigua as informações recebidas, não sabe se são verdadeiras ou não. Em resumo, nenhum órgão do governo conhece com precisão o que faz e o que não faz uma transconfessional, principalmente como o faz e quem seria o beneficiário real do que é feito. As próprias transconfessionais estranham essa omissão das autoridades brasileiras.

MISCELÂNEA DE CREDOS

Se considerarmos o elevado número de missões religiosas estrangeiras existentes no País, somos induzidos a supor que o Brasil constitui um imenso continente pagão à espera de evangelização e não uma nação majoritariamente católica. Com efeito, até dezembro de 1986, aquelas missões, ligadas ou não às diversas igrejas, chegavam a 127, na maioria procedentes dos Estados Unidos. Essa presença ganhou uma expressão de tal ordem que, em 1964, viram-se compelidas a estruturar o "Missionary Infor­mation Bureau" (Missão Informadora do Brasil) para prestar assistência permanente aos missionários, transformado depois num amplo organismo de apoio logístico aos mesmos, que são, atualmente, cerca de 2.500, dos quais 92 por cento americanos. Funciona no centro de São Paulo, à rua 24 de Maio.
O "Missionary Information Bureau" (MIB) é mantido por entidades religiosas dos Estados Unidos e, embora não controle doutrinariamente os missionários ou Ihes forneça recursos para obras, promove regularmente conferências e seminários para sua recicIagem e atualização quanto a problemas brasileiros. Edita uma revista em inglês e caracteriza sua atuação por cuidadosa discrição, não sendo nada amistoso o seu relacionamento com as pessoas que procuram conhecer sua intimidade. Os funcionários do MIB são afetadamente polidos, mas sempre evasivos.
As transconfessionais, as faith missions (missões de fé), que agem com a maior liberdade no Brasil, sustentadas por farto dinheiro procedente de corporações empresariais e multinacionais dos Estados Unidos, alegadamente empenhadas em conter o esquerdismo na América Latina, são organizações, como já foi dito, dirigidas por instituições fundamentalistas, sem vinculação com qualquer igreja. Todas elas, a par do trabalho de evangelização, executam agressivos projetos de natureza cultural e social identificados com a ideologia conservadora do establishment americano. Diversas fundações e entidades civis diretamente comprometidas com o ideário político da ultra-direita daquele país também destinam polpudas subvenções ao desenvolvimento de tais programas entre nós.
Só em São Paulo existe um prédio, o mesmo que abriga o "Missionary Information Bureau" na rua 24 de Maio, quase inteiramente ocupado por sedes de organizações americanas que se dedicam a essa ampla ofensiva político-missionária. No Brasil, estão estabelecidos 59 grupos, transconfessionais dos Estados Unidos, com os nomes pelos quais são conhecidos dos brasileiros e as denominações originais, a saber: Missão Evangélica Amazônica (Acre Goldspell Mission), Missão Bereana do Brasil (Be­rean Mission, Inc.), Missão Evangélica Betânia (Bethany Fe­lIowship Missions), Missão Betesda do Sul do Brasil (Bethesda Mission, Inc.), Memorizadores da Bíblia, Internacional (Bible Memory Association, International), Missão Brasileira de Evangelização (Brazil Christian Evangelism), Missão Cristã do Brasil (Brazil Christian Mission), Sociedade Evangelizadora Bíblica (Brazil Gospel Fellowship Mission), Serviço de Filmes Evangélicos Brasileiros (Brazil Gospel Film Service), Missão Evangélica do Brasil (Brazil Gospel Mission, Inc.), Missão Interior do Brasil (Brazil Inland Mission, Inc.), Comunicações Evangélicas (Brazil Evangelistic Association), Missão Brasil Central (Central Brazil Mission/Christian Church Mission), Aliança Pró-Evange­lização das Crianças (Child Evangelism Fellowship, Inc), Sociedade Evangélica Missionária Educacional Inter-americana (Christian Jail Workers of Brazil), Aliança Cristã Missionária (Christian Missionary Alliance), Centro de Literatura Cristã (Christian Literature Crusade), Comunidade Cristã Missionária do Brasil (Christian Missionary Fellowsbip), Instituição Distribuidora Evangélica (Christian Mission in Many Lands), Missão Evangélica Hosana do Brasil (Christian Service Centers, Inc.), Editora Mundo Cristão (Christian World Publisher), Cristão em Ação (Christian in Action), Missão Hebraica de Cleveland (Cleveland Hebrew Mission), Colaboradores do Brasil (Co-Laborers of Brazil), Associação Brasileira de Ensino, Cultura, Assistência e Religião de Mogi das Cruzes (Evangelical Enterprises, Inc.), União Evangélica Sul-americana (Evangelical Union of South America), Instituto Bíblico de Evangelização (Fellowship of In­dependent Missions), União Evangélica de Sul América (Gospel Missionary Union), Comunicações da Fé (Gospel Recordings, Inc.), O Evangelho ao Brasil - Missão da Fé (Gospel to Brazil ­Faith Mission), A Voz Bíblica Brasileira (Independent Gospel Mission), Aliança Bíblica Universitária do Brasil (International Fellowship of Evangelical Students), União Médico-Hospitalar Evangélica (lnternational Hospital Christian Fellowship), Jam Team Associação Brasileira de Evangelização (Jam Team Minis­tries, Inc.), Missão da América Latina (Latin America Mission), Sociedade Missionária Unida do Brasil (Missionary Church, Inc.), Ministério Evangelístico Missionário (Missionary Evange­listic Ministries), Asas de Socorro (Missions Aviation Fellow­ship), Missão Órfãos do Brasil (Missions and Orphans Minis­tries, Inc.), Associação Missão dos Marinheiros (Missions to Seamen-FIying Angel), Navegantes (Navigators), União Mis­sionária Neo-Testamentária (New Testament Missionary Union), Missão Novas Tribos do Brasil, Leste e Oeste (New Tribes Mission East and West), Serviço de Evangelização para a América Latina (O.C. Ministries), Sociedade Missionária Oriental (OMS International, Inc.), Missão Portas Abertas (Open Doors), Academia Cristã Pan-Americana (Pan American Chris­tian Academy), Liga do Testamento de Bolso (Pocket Testament League), Missão Sul-Americana para os Índios (South America Indian Mission, Inc.), Instituto Lingüístico de Verão (Summer Institute of Linguistics/Wycliffe Bible Translator), Missão Transmundial (Trans World Missions), Rádio Transmundial do Brasil (Trans World Radio), Missão Evangélica da Amazônia - ­MEVA (Unevangelized Fields Mission), Missões Mundial para Crianças (World Mission, Fellowship), Missão Pan-Americana (Worldteam, Inc.), Visão Mundial do Brasil (World Vision Inter­national), Missão de Evangelização Mundial (Worldwide Evan­gelization Crusade), Mocidade para Cristo (Youth for Christ) e Jovens com uma Missão (Youth with a Mission).

ABUSO DE CONFIANÇA

Todas as transconfessionais americanas estabelecidas no Brasil adotam praticamente a mesma estratégia da “Visão Mundial", aqui tomada como exemplo. Desse modo, simultaneamente à execução de um projeto assistencial ou cultural qualquer, pontificam uma linha de proselitismo em que o modelo de sociedade perseguido surge inevitavelmente da conjugação de princípios conservadores com os ideais espirituais buscados pela evangelização. Os Estados Unidos são, então, mostrados como figurino daquela harmonização de fatores num mundo socialmente equilibrado à luz da doutrina cristã. Nesse contexto, não é difícil encaixar o comunismo como elemento de desagregação.
As transconfessionais americanas procuram, prioritariamente, fazer com que seu trabalho produza resultados satisfatórios entre a classe pobre e carente. Das classes média e alta, embora não sejam diretamente visadas, esperam que a boa repercussão de sua obra crie a atmosfera necessária à geração de imagem positiva, imprescindível à continuidade de sua presença no País. Por isso, cercam a sua ação de rigorosa discrição, evitando qualquer tipo de divulgação. Preferem capitalizar os efeitos multiplicadores de um bom conceito transmitido pela propaganda oral de terceiros, de preferência indivíduos de prestígio na comunidade.
O universo-alvo é a classe de baixa renda, próxima da pobreza absoluta e da marginalidade. Seus programas sociais são dirigidos exclusivamente a ela, o mesmo ocorrendo com os de natureza cultural. Já o esforço de evangelização, temperado com a doutrinação política conservadora e anticomunista, estende-se indistintamente a todos os estratos da população. Assim, as transconfes­sionais concentram sua ação nas zonas urbanas periféricas às grandes cidades. Poucas direcionam seu trabalho para regiões mais distantes e menos atingidas pela civilização, no caso, os redutos indígenas. Mas, quando isso acontece, fazem-no com extrema competência, com rara eficiência.
Registra, a propósito, recente informe confidencial do Museu do Índio dirigido ao ministro do Interior:
"Cerca de 25 agências religiosas protestantes dedicam-se, no Brasil, à conversão de índios, destacando-se a "Wycliffe Bible Translators", mais conhecida como "Summer Institute of Lin­guistics" e a "New Tribles Mission". A crítica mais freqüente à atuação da Missão Novas Tribos do Brasil, assim como de outras entidades religiosas protestantes, se faz com relação a possíveis vínculos com empresas multinacionais ou com departamentos de espionagem, envolvendo contrabando de pedras preciosas, minerais estratégicos e outros atos ilegais."
E, mais adiante:
A prática da maior parte das missões religiosas protestantes visa a levar "a palavra de Deus aos povos ainda não alcançados" e representa, na verdade, uma estratégia para introjetar no pensamento indígena valores característicos do american way of life. O campo de observação constituído pela ação missionária demonstra que tais agências apresentam padrões de integração diversificados, porém marcados pela aplicação de mecanismos de dominação ideológica profundamente conturbadores da ordem tribal.
A "Wycliffe Bible Translators" e o "Summer Institute of Linguistics" aos quais se refere o documento oficial, já nossos conhecidos, são o mesmo "Instituto Lingüístico de Verano" ou “Instituto Lingüístico de Verão", organização religiosa fundamentalista que tem sede em Huntington Beach, Califórnia, e que se apresenta como divulgadora da Bíblia em línguas e dialetos exóticos em várias partes do mundo. A entidade, como se recorda, teve sérios' problemas com os governos do Peru, México, Panamá, Equador, Honduras, Bolívia, Colômbia e Venezuela, em alguns desses países acusada de adulterar os textos bíblicos com o objetivo de facilitar a dominação ideológica e econômica dos aborígenes, bem como de cooperar com as autoridades militares na repressão à guerrilha existente naquelas nações.
O "Summer Institute of Linguistics" ou "Instituto Lingüístico de Verão" acumula experiência na tradução da Bíblia para centenas de línguas e dialetos, em mais de 40 países do mundo, desde 1934. Conta com mais de cinco mil missionários profissionais e, no Brasil, a partir de 1956, é responsável pela elaboração de vasto material lingüístico resultante das pesquisas de campo realizadas entre dezenas de tribos indígenas.
O "Summer" tem poucos problemas com a locomoção de suas equipes, baseadas em Brasília, onde estão seus escritórios centrais, até as áreas mais remotas e de difícil penetração. A frota de aviões da "Jungle Aviation and Radio Service" (JAARS), de sua propriedade, dá extraordinária mobilidade a seus missionários, permitindo-Ihes cobrir com facilidade todos os territórios indígenas e, ainda, prestar serviços preciosos, não só à FUN AI, como a outros órgãos do governo brasileiro.
Os trinta anos de trabalho ininterrupto com os índios brasileiros possibilitaram ao "Summer" conhecer a intimidade, não só a língua, como também os costumes, dos seguintes grupos: Apalaí, Apinayé, Apurinã, Asurini, Atroari, Bakairi, Bororo; Canela, Cinta-Larga, Deni, Guajajara, Guarani, Hixkaryana, Hupda, Jamamali, Juma, Kadiwéu, Kaingang, Kaiwá, Karajá, Karipuna, Karitiana, Kavabi, Kavapó, Mamaindé, Maxakali, Munduruku, Mura-pirahã, Nadeb, Palikur, Nambikuara, Oiampi, Parecis, Paumari, Rikbaktsa, Sateré, Sukuí, Tenharim, Terena, Urubu­Kaapor, Waurá, Xavante, Xokleng, Yahup, Yanomani.
A "Novas Tribos do Brasil" opera junto aos grupos Kuripa­ko, Yanomani, Maniteneri, Palikur, Oiampi, Pakaanova, Mbyá, Pankararu, Canela-Apaniekra e Apinayé, enquanto a "Missão Evangélica da Amazônia" (MEVA) envolve-se com os indígenas Makiritari, Makuxi, Kaxuyana e Yanomani.
A médio prazo, prevê-se o surgimento de delicados problemas diplomáticos com os Estados Unidos, se o governo brasileiro decidir avançar o controvertido projeto "Calha Norte", programa que visa ao reforço militar e econômico de nossas fronteiras com a Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa, uma faixa de 6.500 quilômetros de comprimento por 160 quilômetros de largura de subsolo rico em minerais preciosos e estratégicos. A presença de geólogos, biólogos, engenheiros, topógrafos e técnicos, de modo geral. de transconfessionais americanas evidencia, certamente, a existência de outros interesses além dos missionários naquelas áreas, algumas já adquiridas por multinacionais e, outras, sob expectativa do direito de posse definitiva em função da ocupação continuada.

UMA SIGLA INTOCÁVEL

A Assessoria de Ecumenismo e Diálogo Religioso da CNBB enviou, em 30 de novembro de 1984, ao Secretariado para a Unidade dos Cristãos, no Vaticano, um longo relatório sobre a existência e atividades das seitas no Brasil, analisando as causas e circunstâncias que facilitavam a sua proliferação. O documento de 21 laudas também abordava os fatores econômicos ligados ao fenômeno e afirmava, em certo trecho, que "grupos fortes, especialmente dos Estados Unidos, enviam somas fabulosas para atividades de grupos religiosos independentes". A denúncia continuava:
"Na fase atual, haveria o apoio a grupos fundamentalistas e violentamente anticomunistas, tanto evangélicos quanto orientais, para dificultar a ação da Igreja 'progressista'. Há indicações de que este plano não é só de governos nacionais da direita ou militar mas faz parte também da geopolítica norte-americana. Haveria infiltração da CIA em certos grupos, ou estes estariam a ser­viço da mesma. O problema é seriíssimo e exige pesquisas mais aprofundadas.”
O informe do órgão subordinado à CNBB passou tranqüilamente pelo crivo do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), àquela época reunido em Brasília, e não provocaria maiores discussões se a imprensa não o tivesse divulgado com grande alarde. Vieram, então, os desmentidos da Embaixada dos Estados Unidos, inocentando a CIA, e alguns irados pronunciamentos de prelados conservadores revoltados com a insinuação do envolvimento da agência de informações americana. O assunto rendeu dias, tudo porque o documento do órgão da CNBB cometera a inabilidade ou ingenuidade de incluir a CIA entre as suas suspeitas, sem respaldá-Ias com fatos concretos. Poderia ser uma agência qualquer, menos a CIA... No mais, nada foi contestado, principalmente o apoio financeiro procedente dos Estados Unidos a seitas e grupos transconfessionais que sustentam missões no País.
De qualquer forma, o relatório valeu como um primeiro alerta, como grave advertência. As denúncias de que os Estados Unidos estimulam a ação das seitas no Brasil não mereceram reparos, assim como a canalização de vultosa quantidade de dinheiro de corporações empresariais, fundações e doações de particulares destinadas a manter atividades religiosas entre nós. Também ficaram de pé as conclusões de que os Estados Unidos se aproveitam ideologicamente da pregação daqueles grupos religiosos, notadamente contra o comunismo.
Conquanto mais cauteloso, o pormenorizado comunicado conjunto sobre as seitas elaborado pelo Secretariado para a União dos Cristãos, Secretariado para os Não-Cristãos, Secretariado para os Não-Crentes e Pontifício Conselho para a Cultura, publicado a 29 de junho de 1986, no Vaticano, referiu-se objetivamente àquele ponto polêmico do documento da CNBB:
"Em alguns países podemos suspeitar, e em alguns casos estamos certos, de que uma poderosa força ideológica, bem como interesses econômicos e políticos, estão a trabalhar através das seitas, servindo-se do aspecto humano para fins desumanos, totalmente alheios a um interesse sincero pela humanidade. É necessário informar os fiéis, em particular os jovens, de que estejam atentos, proporcionar-Ihes uma ajuda profissional, aconselhá-Ios e assegurar-Ihes uma proteção legal. Às vezes deveríamos reconhecer, e até mesmo encorajar, medidas radicais do Estado no setor que lhe compete."
Era a primeira manifestação da Santa Sé sobre a matéria.
Dias depois, fazendo coro com aquelas censuras, Dom Ovídio Perez Moralez, da Venezuela, presidente da Comissão para as Comunicações Sociais do CELAM, ocupando a Rádio Vaticano, criticava duramente "os governos de países industrializados que dão apoio logístico às seitas para comprar espaço na imprensa escrita, televisão e rádio", numa clara alusão à mídia religiosa financiada pelos Estados Unidos.
Há muito tempo, o governo americano já não promove qualquer tipo de ajuda direta às igrejas protestantes históricas que funcionam no exterior. Essa ausência da cobertura, mais sentida após a Segunda Guerra Mundial, deveu-se à constatação, pelo Departamento de Estado, de que o protestantismo tradicional pouca coisa representa no jogo da "guerra fria" com a União Soviética e no levantamento de barreiras ao avanço do comunismo. Se é apenas burguês e conservador em todas as partes do mundo, no Brasil tem se mostrado, no entanto, propenso a aceitar e até a participar da discussão dos problemas sociais que empolgam a Igreja Católica. Com os católicos, chegou mesmo a constituir o CONIC, um verdadeiro foro de debates de todas as questões sociais que inquietam o País.
Por isso mesmo é que o reverendo Sérgio Marcus Pinto Lopes, 49 anos, metodista, secretário-regional para o Brasil do Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI), entende que o direcionamento de recursos financeiros para a evangelização através de sociedades transconfessionais (faith missions) e não das igrejas tradicionais envolve uma questão de confiança. Explicou ele em declarações feitas em Santo Amaro, São Paulo, que é preciso diferenciar entre o propósito dos doadores e o propósito das sociedades. Muitas são as pessoas que dão dinheiro às agências ou sociedades porque estas são muito mais agressivas em suas campanhas para levantar fundos e que, nos Estados Unidos, com um excelente serviço de mala-direta, coletam esses recursos com a promessa de isenção do imposto de renda, o que lá, como aqui, é permitido por lei. Além do mais, essas sociedades fazem uma intensa propaganda de que o dinheiro levantado será usado realmente em evangelização, deixando a entender que as igrejas o desviam para outras finalidades.
Segundo o reverendo Sérgio Marcus Pinto Lopes, aquele tipo de pregação está muito mesclado de ideais da religião civil dos Estados Unidos (Deus- Pátria- Família) e com apelos muito fortes ao espírito do povo americano. Exortam, igualmente, o cidadão a intensificar a luta anticomunista, recurso que praticamente abre a bolsa do povo, e acusam as igrejas de estarem envolvidas com uma teologia que nada mais é do que marxismo disfarçado. Lembra o pastor, então, um artigo publicado há algum tempo na revista "Reader's Digest", sob o título "Você sabe para onde vão as ofertas de sua Igreja" , no qual se declara abertamente que as dádivas dos membros da Igreja são usadas para patrocinar grupos guerrilheiros, para apoiar até o ayatolah Khomeini. Esse tipo de propaganda é negativo e cria uma atmosfera de desconfiança dentro das igrejas muito difícil de superar. Assim, o propósito dos doadores de recursos para tais agências acaba sendo honesto, pois é gerado por seu engano.
As chamadas sociedades transconfessionais - prossegue Q reverendo - possuem um objetivo bem definido, perceptível claramente no tipo de Evangelho que pregam. Este é nitidamente pró-Estados Unidos, anticomunista, voltado para um individualismo evidente, que promove uma religiosidade desvinculada de preocupações com o momento político-social presente. O reino de Deus é visto como uma realidade meramente futura, a ser implantado de maneira milagrosa pela intervenção direta do Senhor na História. Portanto, nada há a fazer aqui, a não ser pregar o Evangelho que ajuda a outros a escaparem das tentações do mundo atual e a preparar-se para a vida do outro lado da morte. Para isso, dá-se ênfase à existência de piedade (oração e leitura da Bíblia), quase que em contraste com a ação no meio da sociedade. Esta estrutura-se segundo as ações do diabo e Deus o tem permitido por enquanto, até que se manifeste sua intervenção no próprio momento. Ao cristão, cabe defender-se das artimanhas malignas, inclusive a pregação da transformação das estruturas sociais, em busca de uma eqüitatividade de oportunidade para todos e uma distribuição mais justa das riquezas da sociedade.
E arremata o pastor Sérgio Marcus Pinto Lopes:
"É verdade que muitos organismos procuram atacar a questão social dos países do Terceiro Mundo, através da educação, do socorro às enfermidades, do amparo à infância. Isto significa, no entanto, trabalhar dentro das estruturas existentes, sem procurar mudá-Ias. O problema é uma questão de ignorância e de inexistência de ponto de partida para subir na vida. Mas a questão tem sido muito problemática para algumas dessas sociedades. À medida em que seus funcionários começam a entrar de rijo no trato com a questão, acabam descobrindo que isso não adianta, pois o sistema vai produzindo mais necessitados do que todos aqueles a quem os seus milhões de dólares podem socorrer. Isso tem criado muitas crises internas e muitos funcionários acabam saindo dessas instituições e grupos ou acabam sendo dispensados."

O APROVEITAMENTO INTELIGENTE

Aspecto muito delicado no exame do novo perfil religioso que se traça para o Brasil com as fissuras verificadas no arcabouço católico tradicional é o da identificação do aproveitamento político das mesmas, ou melhor, estabelecer se as alterações registradas são resultantes de um esquema intencionalmente montado fora do País ou se existe apenas a simples manipulação de suas conseqüências objetivas. Recorda-se que, no início deste estudo, ficou consignado que seria ingênuo, para não dizer absurdo, raciocinar com a hipótese da existência de um plano ordenado com objetivos políticos para conseguir uma modificação imediata no quadro religioso brasileiro. Apoiamos nossa assertiva na lembrança de que uma trama desse tipo não se enquadraria na temporalidade das coisas e que as ideologias não parecem interessadas em coordenadas de sedimentação tão futura que requeiram séculos para apresentar resultados práticos. Mas que não se desprezavam as oportunidades oferecidas pelos rumos naturais que possam assumir os movimentos sociais ou religiosos, nem deixavam de aproveitar as brechas ocasionalmente abertas nas estruturas para infiltrar as mesmas ideologias.
Pois bem. A análise das implicações da ação dos grupos, religiosos autônomos ou seitas no País, vista de todos os ângulos, só serviu para robustecer o acerto daquele entendimento e fortalecer a convicção de que apenas uma visão facciosa da realidade modificaria nosso ponto de vista. Estamos, de fato, persuadidos de que essa é a posição correta.

O teólogo Julio de Santa Ana, 50 anos, diretor do curso de pós-graduação do Instituto Metodista Superior, de São Bernardo do Campo, e pesquisador do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (CESEP), de São Paulo, também pensa como nós. Para ele, as sociedades latino-americanas, e a brasileira em particular, experimentam, há mais de três décadas, um processo de rápidas mudanças sociais. Gradualmente, de maneira quase imperceptível, vai se produzindo uma ruptura social que se manifesta de formas muito diferentes. Embora haja aspectos da existência social que demonstram uma grande resistência a essas mudanças (por exemplo, a estrutura econômica, as instituições políticas, etc.), existem outros que demonstram serem permeáveis a esse processo de transformações sociais. Entre eles merece uma atenção especial o campo que se relaciona com o pensamento e a prática religiosa.
As religiões não podem ser desligadas do que acontece em outras esferas da vida social. As transformações que as diversas expressões religiosas manifestam não têm lugar a partir de si mesmas, na maioria dos casos. No geral, as mudanças nas religiões respondem a processos sociais, econômicos e, inclusive, ideológico-políticos. Na América Latina, o crescimento demográfico e as migrações internas incidiram e continuam influindo sobre as expressões religiosas, sobretudo a nível popular.
Assim, para quem vê as coisas de acordo com a perspectiva dos estudos de sociologia da religião, é indubitável que o crescimento das igrejas pentecostais é notável, o surgimento e desenvolvimento das comunidades eclesiais de base, assim como a irrupção crescente de comunidades religiosas livres ou seitas não podem ser separadas das transformações sociais que estão se produzindo na América Latina no correr dos últimos 25 ou 30 anos. Quer dizer, essas rupturas sociais correspondem a rupturas religiosas. Outros tipos de rupturas poderão ocorrer no futuro. Quase se pode afirmar com certeza que a consciência social dos grupos que experimentam com maior força os processos de alteração histórica não podem deixar de manifestar essa consciência no plano religioso.
Embora a orientação da ação social não seja a mesma entre os membros das igrejas pentecostais (geralmente conservadores, aliados ao poder que administra a situação) e os membros das comunidades eclesiais de base (no geral, caracterizados por atitudes progressistas), ambos os grupos têm algo fundamental em comum: a necessidade de afirmar, de uma ou de outra maneira, diante de situações inéditas que afetam fortemente sua identidade, seu equilíbrio, sua segurança. Isso também vale para aqueles que aderem às comunidades religiosas livres ou seitas. Esses três grupos acompanham as rupturas sociais com posturas religiosas que também rompem com as formas dominantes no campo religioso, tanto com o catolicismo tradicional como com as denominações protestantes clássicas. É verdade que cada um desses grupos tem definições muito diferentes das dos outros dois. Contudo, isso não é .0 mais importante. Deve-se dar atenção aos três conjuntos sociais ao se engajarem - cada um à sua própria maneira - na busca de uma nova situação.
O teólogo Julio de Santa Ana toca no ponto nevrálgico da questão:
Parece importante insistir no que foi afirmado, sobretudo quando se ouve dizer tantas vezes por aí que o crescimento dos pentecostais e a irrupção dos grupos religiosos livres que hoje se apresentam em toda a América Latina, como também na África e um pouco menos na Ásia, são resultado de um complô urdido fora de nossos países, mais precisamente nos Estados Unidos. Dessa nação vêm as grandes somas de dólares que se destinam aos grupos religiosos livres e também subsidiam os programas de TV e rádio de grupos pentecostais, fundamentalistas e conservadores, para não dizer reacionários. Pessoalmente, estimo que não existe o tal complô. Se esses grupos religiosos avançam é porque as condições imperantes na situação de mudanças sociais assim o permitem e até trabalham em seu favor. Quer dizer, o processo social pode ser comparado a um caldo de cultura que permite a vida e o desenvolvimento dessas comunidades, como também das comunidades eclesiais da base. Sem esse contexto, não haveria tal crescimento. Deve ser dito, também, que, embora não acreditemos na existência desse complô religioso, isso não quer dizer que desconheçamos as intenções - que são bem claras ­ de manipulação desses grupos, especialmente por setores conservadores, tanto latino-americanos como de fora da Ibero-América. Entre esses, merecem ser citados o Instituto para a Religião e Democracia, os programas de TV de evangelistas, como Jimmy Swaggart, etc. Portanto, embora não haja complô, pelo menos há manipulação.



DESCASO E CONIVÊNCIA

A Igreja Católica lamenta que, após quase cinco séculos de evangelização da América Latina, esteja vivendo hoje sob as ameaças de uma pressão secularista conseqüente de mudanças culturais, por força, principalmente, dos fenômenos de urbanização, migrações e desenvolvimento dos meios de comunicação. Acha que aquelas transformações acentuaram-se bastante nas últimas décadas, criando um vazio que, não sendo preenchido por uma nova reinterpretação do catolicismo para os latino-americanos, foi progressivamente ocupado pelos movimentos religiosos autônomos ou seitas. Formas religiosas ou pára-religiosas que ofereciam respostas mais concretas à busca espiritual do homem foram substituindo gradativamente a fé tradicional cristã e se firmando como credo novo para o povo. É uma situação de fato que, quer queiramos ou não, constitui o grande desafio pastoral para a Igreja Católica. De outra parte, a Igreja tem procurado entender que a condenação pura e simples das seitas não é a melhor saída para o impasse. Reconhece, portanto, que o povo quer mudanças religiosas e que a postura mais correta é procurar compreender as razões de tal desejo e não radicalizar atitudes de intolerância contra elas.

Naquela linha de raciocínio, não existe espaço no pensamento da Igreja Católica para ao menos cogitar de medidas mais extremas para reverter a situação ou promover um recuo aos tempos em que o catolicismo era a religião oficial no Brasil. O mundo mudou, a Igreja Católica é outra, mais aberta e receptiva ao pluralismo, espelhado, por exemplo, na excelente convivência em todos os campos com as igrejas protestantes históricas.
Conquanto essa posição seja válida até para as seitas, depreende-se uma certa dose de desapontamento nas palavras de advertência do Vaticano para o incontido avanço dos movimentos religiosos livres, expresso no comunicado conjunto emitido pelo Secretariado para a União dos Cristãos, Secretariado para os Não-Cristãos, Secretariado para os Não-Crentes e Pontifício Conselho para a Cultura: “Às vezes deveríamos reconhecer, e até mesmo encorajar, medidas radicais do Estado no setor que lhe compete". Esse desapontamento, contudo, não tem maiores conseqüências, pois a Igreja não faz qualquer tipo de gestão junto ao Estado para usar mão pesada contra as seitas, pelo menos no Brasil.
De fato, tem havido uma excessiva liberdade, para não dizer omissão e conivência, no caso das transformações religiosas experimentadas no País. O que acontece aqui é "que simplesmente ninguém é responsável por nada. Nenhum órgão do governo toma qualquer iniciativa para preservar nossos padrões culturais, permanentemente agredidos pelas mais estranhas ideologias que por cá surgem sob a capa de religião. Desconhecem-se por completo o nível e a intensidade desse processo de aculturação, exacerbado ao extremo pela invasão sistemática de valores morais e éticos" contrários à nossa índole, que ingressam no País na esteira das novas seitas. E ninguém faz nada.
Aquele perigo avulta-se à medida em que a evangelização converte-se em proselitismo. Se, em várias partes do mundo, inclusive o Brasil, os cristãos são encarados com reserva devido à sofreguidão com que se lançam ao trabalho evangelizador, muito mais ainda se justifica essa desconfiança quando se substitui aquela ação por uma doutrinação que procura corromper e agredir os valores tradicionais do universo-alvo. Hoje, muitos missionários e assemelhados agem exatamente como os antigos religiosos espanhóis e portugueses do século XVI, que queriam impor uma cultura alienígena aos povos conquistados, a qualquer preço. É preciso deixar bem claro que a conduta das igrejas protestantes, nesse particular, não merece qualquer reparo. Sabidamente conservadores, os protestantes tradicionais não costumam, porém, colocar a sua fé a serviço de ideologias ou de grupos radicais que fazem da religião um instrumento da política. No enfoque de questões sociais, as igrejas protestantes históricas sabem, igualmente, corresponder às expectativas nacionais em relação a essa problemática. Seus missionários, por outro lado, adotam um comportamento caracterizado por uma linha de absoluta correção, não se imiscuindo em assuntos de política interna e, muito menos, se envolvendo em atividades de aculturação.
Grande parte dos missionários procedentes dos Estados Unidos pertencentes a grupos fundamentalistas ou a seitas cometem, todavia, o grave erro de equiparar o americanismo ao cristianismo, forçando a absorção do american way of life, virtualmente obrigando as pessoas a adotarem os padrões institucionais em voga na América do Norte. É comum, assim, a identificação fácil de um paralelismo entre a pregação daqueles missionários e o discurso político americano, especialmente o anticomunismo, caracterizados o Oeste - o Ocidente - como o bem e o Leste - a União Soviética e satélites - como o mal. Omite-se a divisão do mundo entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, isto é, ignora-se a existência do Terceiro Mundo.
Em meio a toda essa manipulação político-ideológica, torna­-se difícil, portanto, entender questão de tamanha complexidade sem que, antes; se explique satisfatoriamente o que, na realidade, fazem no País os 2.500 missionários catalogados pelo "Missio­nary Information Bureau", se é que são somente 2.500, e quais são as atividades desenvolvidas entre nós por 59 sociedades transconfessionais registradas no MIB. Quem as financia? Para quê? Qual o volume de recursos encaminhados ao Brasil pelos grupos pentecostais sediados nos Estados Unidos? Qual a quantidade de dinheiro, por exemplo, os mórmons, os adventistas, as testemunhas de Jeová e a seita Moon recebem dos americanos? Com que objetivo? A qual autoridade brasileira prestam contas? Estas, como dezenas de outras, são indagações que o povo gostaria fossem respondidas antes de acusar de desídia os órgãos de governo a quem competiria fiscalizar os atos desses grupos religiosos, sobretudo o Conselho de Segurança Nacional, Ministério da Justiça, Polícia Federal, FUNAI e Banco Central. São necessárias respostas urgentes e objetivas, porque as questões envolvem a movimentação de fabulosas somas de divisas estrangeiras, entrada ilegal de imigrantes no País, fraude de documentos, usurpação de terras indígenas, exploração ilegal do subsolo e ameaças à segurança nacional. É preciso conhecer toda a verdade, para ajuizar corretamente a situação e saber com exata precisão de que direção, que não do Norte, vêm os falsos profetas, os sedutores ou os demônios, como os denomina a Bíblia.

A propósito de demônios, contavam os antigos irlandeses que, assim que a fé cristã começou a se propagar por suas terras, os demônios adotaram uma atitude revanchista e intimidatória. Vindos do Norte, rondavam as casas durante as noites, arranhando portas e janelas, farfalhando suas asas enormes, gemendo com o choque de seus corpos peludos contra as paredes. Todos ficavam petrificados de medo, trancados a sete chaves. À força dos hábitos do passado, os ameaçados recorriam aos deuses pagãos, sacrificavam animais para aplacar a fúria das entidades malignas, queimavam ervas, protegiam-se com réstias de alho. Nada adiantava. Os demônios continuavam a amedrontá-Ios. Foi aí que os novos tementes a Deus, o Deus verdadeiro, se lembraram de que se afixassem a Cruz aos pórticos de entrada estariam livres das ameaças diabólicas. Assim fizeram e os demônios voltaram para o Norte. Mas provisoriamente, porque está escrito:

"Sede sóbrios e vigiai, porque o demônio, vosso adversário, anda ao redor, como um leão que ruge, buscando a quem devorar"
(I. Pedro 5.8).


São Paulo, março de 1987.